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Críticas

Cineplayers

Poesia e velhice.

7,0

Fazer um filme poético é uma coisa (não é o caso, talvez nem a intenção do diretor Chang-dong Lee); mas um filme sobre poesia é bem mais complicado. Talvez não seja justo reduzir o longa coreano a essa condição (até por não ser unicamente sobre poesia), porém definir e verbalizar conceitos sobre essa arte tão sutil (e que por natureza dispensa conotações redutoras e didáticas como as que são ditas pela boca de alguns personagens) faz com que o filme seja sobre o assunto, enquanto paradoxalmente mais se afasta de seu significado à medida que discorre sobre ele. Poesia (Shi, 2010) nos coloca na mesma perspectiva de sua personagem central, que a partir de dado momento busca enxergar poesia nos mínimos objetos e nas pequenas coisas. O professor em sala de aula falando sobre a necessidade de libertação da poesia aprisionada dentro de cada um dos seus alunos, no curso em que a protagonista Mija (Jeong-hie Yun), já com mais de 60 anos, se matricula em ultima hora, remete inescapavelmente à idéia de uma versão oriental (e menos piegas) de Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society, 1989), ou ao menos sugere uma discreta aproximação com o sucesso americano da década de oitenta.
 
As aulas de poesia no centro cultural, entretanto, são apenas intervalos na narrativa de horror que beira a existência de Mija. Vítima de Alzheimer, a senhora de idade tem como única companhia o neto do qual é a responsável pelo sustento, que teria abusado sexualmente, junto com outros colegas de escola, de uma menina que se suicidaria pouco depois. A tragédia, como se percebe, não é pequena, mas é como se Chang-dong Lee tivesse consciência de uma lição importante pra todo cineasta, a de que cabe ao artista bom senso para optar entre boas e as más escolhas que residem próximas uma da outra, para logo em seguida burilar o seu material: o coreano não escolhe por mostrar as desgraças que por si só poderiam cinematograficamente resultar em um extremismo estéril e em nada ajudar ao desenvolvimento da narrativa. Chang-dong trilha outro caminho, e a jornada de Mija é suficiente para exprimir o horror que circunda o drama (especialmente no rosto bastante expressivo da atriz que interpreta a personagem). É como se a experiência do estupro sofrido pela menina morta se estendesse e não terminasse mais no corpo ainda vivo da mulher idosa.

Outro filme que nos vem em mente ao assistir Poesia é o recente e também sul-coreano Mother - A Busca pela Verdade (Madeo, 2009), que também era sobre o périplo de uma senhora de idade obrigada a correr atrás da resolução dos conflitos em torno da família (no caso, um filho com deficiências mentais). Um cruzamento improvável entre um filme como Mother e Sociedade dos Poetas Mortos traduz muito bem o que Poesia tem de desequilíbrio, embora seja digno de interesse o percurso que Chang-dong trilha nessa corda bamba. Mija precisa juntar dinheiro para pagar o acordo que teria sido combinado entre a mãe da vítima e os pais dos outros garotos, mas o que ela ganha trabalhando como faxineira não a ajuda em nada. Cuidar de um velho debilitado (Hira Kim) que sofre com as seqüelas de um derrame é outra de suas opções de trabalho, mas é o curso de poesia que vai colocar em xeque as noções de mundo da personagem feminina. Mija se questiona sobre as suas próprias percepções, e ao criar interesse pela poesia, decide encarar o desafio da experiência: ao invés de desvendar um crime, se emprega na aventura de escrever um poema.

Poesia é um filme mais acessível que muitos outros exemplares do cinema oriental contemporâneo. Suas intenções são apresentadas às claras, sua estética tampouco é desafiadora. Um filme desprovido de mistério ─ e aí me refiro não a um enigma oculto em sua trama, mas a segredos indevassáveis que nos assombram horas ─ ou semanas ─ a fio, quando nos deparamos com muitas das obras mais instigantes que nos chegam do cinema que vem da Ásia. Ganhador do prêmio de roteiro em Cannes com Poesia, Chang-dong já era um roteirista importante nos anos noventa (muito antes de sua estréia na direção), e provavelmente seja aí que resida o seu maior talento. Com um roteiro de boas idéias e capaz de sustentar um ponto de partida pouco promissor como o de Poesia, como diretor nem sempre é bem-sucedido em sua execução, pintando belas imagens mais para que elas saltem à vista ao invés de prezar pela justeza de seus planos. Poesia é um filme bonito ─ mas sobretudo, um filme que se quer muito bonito, ainda que sem abrir mão da simplicidade que carrega em sua essência.

Embora conte com um número razoável de trabalhos em seu currículo de realizador, é como se o cineasta ainda estivesse lapidando o que lhe interessa pra encontrar o diamante bruto, ficando, entretanto, no meio do caminho. Os atores ajudam muito, como se pode notar em cenas como a do sexo na banheira, sem nenhum erotismo e implícita, das mais delicadas do cinema recente. Poesia também se apresenta (ainda que timidamente) como um filme sobre a velhice, mas centrada num personagem feminino (o que pensando bem não é muito frequente em produções com esse tema). Talvez ele se torne mais justificável sob essa ótica do que a de um filme sobre (ou acerca de) poesia. Não é filme para se desprezar, mas menos ainda para se amar.

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