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Críticas

Cineplayers

A ironia e as contradições sob a ótica da guerra.

9,5

Tal como outros verdadeiros clássicos do cinema, A Ponte do Rio Kwai (The Bridge on the River Kwai, 1957) é um filme que faz parte do imaginário cinéfilo coletivo. Mesmo após quase 60 anos de seu lançamento, permanece vivo e com certo frescor a fábula da construção da ponte de guerra, estandarte da insanidade e da eloquência dos objetivos belicistas. Reprisado incessantemente na televisão por anos a fio (eu mesmo o vi pela primeira vez ainda na infância, numa sessão de sábado à tarde na TV), mesmo para quem nunca de fato teve um contato direto com a obra sabe qual será o seu derradeiro final.

Este filme imensamente popular traz a situação em que britânicos são feitos prisioneiros pelo exército japonês, e em tal condição são obrigados a construir a ponte. Mas vislumbrando uma oportunidade para ostentar superioridade, tratam de fazer a melhor possível – aqui a contradição se mistura com ideais do imperialismo, devaneios colonialistas e as próprias raízes do pensamento totalitarista. Porém muito mais do que um filme de crítica à guerra, ou ainda simplesmente uma grandiosa produção, A Ponte do Rio Kwai é uma obra de ironia, que trata com sarcasmo e alguma dose de humor o comportamento dos homens, em especial num momento de conflito bélico, neste caso a 2º Guerra Mundial – mas não somente. A validade de conceitos como honra, trabalho e disciplina são postos com certo distanciamento crítico, e a guerra aqui serve como baliza de referência – para que, afinal, vivemos? De que adiantará todo o esforço humano, se o inevitável fim nos aguarda, irremediavelmente?  Talvez este tenha sido o último pensamento do Coronel Nicholson, no melhor papel da carreira de Alec Guiness (Charles Laughton havia sido escalado inicialmente). Ou do Doutor Clipton, que brada “Loucura! Loucura!”, nas últimas palavras do filme. Como diz a máxima que muitas vezes a razão pode estar apenas com um homem, talvez o mais lúcido seja o malandro e pária Shears (William Holden), doido pra escapar de tudo aquilo.

É interessante notar como a fábula da ponte serve de exemplo da face trágica do século 20, com suas guerras, ditaduras e massacres. O surgimento de estruturas de poder voltadas para uma forma de dominação e a destruição dos laços éticos entre os homens. Kwai, dentro do padrão de uma grande produção, tem ares de um estudo alegórico sobre a formação e a decadência dos projetos nacionalistas e suas extensões imperialistas, mostrando como a experiência totalitária não surge como produto da loucura de poucos, mas ganha adesão com a lógica de sistemas de dominação, que não hesitaram em fazer de diferenças étnicas, de identidade nacional e de classe o motor para um processo de domínio de resultados desastrosos. A adoção do modelo do terror como uma forma central de relacionamento do Estado com seus cidadãos.

O exemplo maior do discurso do filme, curiosamente, talvez esteja na própria maneira como o filme foi concebido – tão irônico como o próprio enredo. O roteiro foi escrito por Michael Wilson e Carl Foreman, que estavam na lista negra do comitê das atividades antiamericanas, considerados como comunistas subversivos. O nome dos roteiristas acabou não sendo revelado, porém Kwai ganhou 7 Oscars, entre eles melhor filme e inclusive melhor roteiro, que acabou indo parar nas mãos do autor do livro que serviu de base, Pierre Boulle, autor de Le pont de la rivière Kwai (1952), que sequer sabia inglês. Em 1984, a academia teve que se redimir, entregando o Oscar aos seus verdadeiros autores.

A Ponte do Rio Kwai é também divisor de águas do diretor inglês David Lean. Antes, seus filmes eram predominantemente produções pequenas, intimistas, voltadas a dramas particulares de seus personagens – exemplo maior do cinema da sua primeira fase é Desencanto (Brief Encounter, 1945). Após Kwai, os filmes de Lean tornaram-se grandes produções de imensos orçamentos, em cenários vastos e esplendorosos, com longa duração. Mas que fique claro que seu cinema, do primeiro ao último filme, sempre foi marcado pela beleza visual, pela ênfase na fotografia, numa busca de representação pictórica primorosa a um meio audiovisual como o cinema. Num período bastante anterior ao amplo uso da computação gráfica, os filmes de Lean traziam consigo esforços de construção reais – tudo, como a ponte, de fato foram construídos. O que tornam seus filmes muito especiais por isso também, pois muito provavelmente jamais o cinema contará com uma produção e direção de arte tão autêntica e artesanal.  Kwai ainda tem uma pérola: o tema musical "The Colonel Bogey March", de Mitch Miller, uma das melodias assoviadas mais conhecidas e parodiadas do cinema, muita usada em encenações militares das mais diversas - sendo tema até da extinta gincana televisiva "A Ponte de Rio Que Cai", inspirada no filme.

O grande reconhecimento de Lean veio em sua segunda fase, pelo menos no que confere a ganhar prêmios – somente com este e os dois seguintes, seus filmes acumulam 19 estatuetas do Oscar, e 28 indicações.  Nesse sentido Kwai é o centro, o ponto de equilíbrio do diretor: um estudo intimista dos personagens, mas também uma produção épica, grandiosa, grandiloquente. Mais uma contradição: embora seus filmes mais populares e premiados sejam da sua segunda fase, como Lawrence da Arabia (Lawrence of Arabia, 1962) e Doutor Jivago (Doctor Zhivago, 1965), para a história e para a crítica seus melhores filmes sejam justamente seus primeiros, como Nosso Barco, Nossa Alma (In Which We Serve, 1942) e Grandes Esperanças (Great Expectations, 1946).

Acima de tudo, A Ponte do Rio Kwai é uma sátira. E como boa sátira inglesa que é, torna-se possível estabelecer um paralelo com a citação presente no mais famoso poema satírico da literatura britânica, a Epístola para o Dr. Arbuthnot (1735), escrito por Alexander Pope, que diz o seguinte: “Who breaks a butterfly upon a wheel?” - ditado bastante popular no Reino Unido. Numa livre tradução e interpretação, refere-se a ideia de que nos esforçamos demais por coisas insignificantes - muito barulho por nada. Mas a pretensão, o esforço e o apelo popular dos filmes de David Lean certamente valeram a pena.

Comentários (7)

Wellington JS | quinta-feira, 16 de Fevereiro de 2012 - 23:01

Esse é filmaço mesmo, Laurence tambem é muito bom, David Lean fazia análises do ser humano como poucos no cinema.

Juliano Mion | sexta-feira, 17 de Fevereiro de 2012 - 00:17

Há um velada desilusão com o homem no final de todos os seus filmes.
No final de Desencanto (Brief Enconter), o homem em fuga, a câmera perdendo o eixo radicalmente...

Adriano Augusto dos Santos | sábado, 18 de Fevereiro de 2012 - 08:43

Um dos meus preferidos da Segunda Guerra,concordo sobre o Alec Guiness foi o seu melhor.

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