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Porgy e Bess

(Porgy and Bess, 1959)
6,3
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Críticas

Cineplayers

Um coro em tempo de verão

8,5

Imagine uma cena de teatro. O cenário, no palco, está totalmente à nossa vista. O mundo que é ali construído tem, inevitavelmente, uma qualidade do artifício. São construções ficcionais, o que podemos notar não apenas por sua textura de algo que pode ser facilmente derrubado (ou “desmontado”, para usar a linguagem técnica), mas também pelo lugar onde esse mundo está inserido: o palco de um teatro. O cinema, supostamente, estaria se desenvolvendo em uma ruptura com essa construção de cena do teatro: realismo, profundidade de campo, decupagem. Mas não é uma ruptura o que vemos em Porgy e Bess (Porgy and Bess, 1959).

O filme, dirigido por Otto Preminger e Rouben Mamoulian, é uma adaptação da ópera estadunidense (frequentemente montada também na forma de teatro musical) Porgy and Bess, uma colaboração de DuBose Heyward com George e Ira Gershwin. Ambientado em um bairro negro ficcional da Carolina do Sul, a peça, como o filme adaptado a partir dela, acompanha os habitantes desse lugar através de um verão. O otimismo da estação se confronta com um furacão que se aproxima e mexe profundamente com a vida dos personagens, dentre eles Porgy (Sidney Poitier), um homem com deficiência física, e Bess (Dorothy Dandridge), uma mulher rejeitada pela maior parte da comunidade.

No filme, a representação desse lugar é mais fiel ao teatro do que ao cinema. O bairo ficcional onde ocorrem os eventos da trama parece uma estrutura falsa – e tão evidente por sua falsidade quanto vários dos cenários que vemos na então emergente ficção televisiva. Essa encenação que não reivindica verdade, no entanto, dá à história um aspecto de parábola, o que não é por acaso. A ópera Porgy and Bess, afinal, foi criada depois de um intenso processo de pesquisa com a música popular estadunidense. Curiosamente, esse esforço por criar uma narrativa a partir de formas locais (seja na composição musical ou no próprio texto) com um olhar que está fora dessa localidade pretendida (os Gershwin, por exemplo, compunham geralmente para os mais deslumbrantes musicais da Broadway e do cinema) termina por tornar evidente essa aparência de fantasia da ficção teatral e cinematográfica.

Mas o filme acredita na fantasia criada, e é isso que faz dele a mais potente adaptação da ópera para o audiovisual, mais do que os filmes televisivos ou mesmo as filmagens oficiais da peça. Porgy e Bess tem a força de uma tradição da oralidade articulada numa determinada forma visual. É lógico que essa tradição é falsa, a ópera era ainda recente quando a adaptação foi feita. E a ideia de que existe uma cultura popular de que ela se aproxima deve ser percebida com desconfiança. Ainda assim, quando Clara (Diahann Carroll) entoa os primeiros versos de “Summertime” nesse cenário de fantasia popular (ou de uma ideia do popular como fantasia), ela nos abre um caminho por dentro de um mundo próprio do cinema, livre do realismo.

A continuidade das músicas joga muito diretamente com esse modo de contar histórias. A narração musicada nos coloca em um lugar de escuta enquanto espectadores, e é nesse ponto que a força da oralidade opera no filme. Com o canto, o enredo se desenvolve como uma sequência de mensagens que parecem se referir a algo que já ocorreu antes do que vemos – ou, ao menos, a uma história que se repete todo tempo de verão. Enquanto a ópera produz uma sensibilidade estética a partir da voz (e um sentido só a partir dessa sensibilidade), o trabalho cinematográfico que Preminger e Mamoulian busca essa sensibilidade na conjunção entre o canto e a visualidade quase ilustrativa.

Sustentar a qualidade narrativa desse canto, no entanto, é um trabalho que deve articular de maneira muito acertada uma presença em cena do elenco de voz e de palco. Dos atores principais, apenas Sammy Davis Jr. e Pearl Bailey aparecem com suas próprias vozes. Poitier, Dandridge e Carroll são dublados, respectivamente, por Robert McFerrin, Adele Addison e Loulie Jean Norman. Mas não podemos nos reduzir a entender a dublagem como uma evidência de um trabalho menor de atuação. É, inclusive, justamente no modo como esse canto de fora se associa à imagem dos atores em cena que o filme se liberta de um realismo do cinema e de uma pretensão de autenticidade do teatro.

Uma vez irreal e nada autêntico, Porgy e Bess alcança algo sobre essa narrativa que as outras adaptações e filmagens da ópera, mais propensas a negociar com o realismo, não conseguem alcançar. Em determinado momento do filme, quando a morte de um homem interrompe o otimismo do verão, seu corpo é velado com um coro de vozes fantasmáticas que não pertencem às figuras em cena, como um oráculo que já viu aquilo ocorrer uma vez e sabe que verá ocorrer de novo. É magia produzida desde a técnica fílmica. É a estranha fantasia que o cinema permite.

Texto integrante da série Vestígios da Era de Ouro

Comentários (1)

Vítor Miranda | terça-feira, 10 de Dezembro de 2019 - 17:56

existe cópia boa desse filme?

Rodrigo Torres | domingo, 05 de Janeiro de 2020 - 08:12

Eu já procurei e nunca achei. Dificílimo mesmo!

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