Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Welles visita Kafka.

9,0

Escrevendo sobre Welles, Truffaut diz-se sentir decepcionado mas ao mesmo tempo tenta compreender O Processo - no início dos anos sessenta, o diretor, convidado por um produtor a adaptar um material em domínio público, escolheu o autor tcheco e causou curiosidade no crítico e cineasta francês porque Welles, um cineasta essencialmente grandioso, com sua câmera esbanjando força primeva, escolheu para adaptar um romance de um autor cujo estilo era conhecido essencialmente pela interiorização, jamais pela explosão, onde um mundo autoritário e opressivo cerca indivíduos angustiados porém conformados com o absurdo com que se deparam - em suas palavras, o encontro do bigger than life, o maior que a vida, com o smaller than life, menor que a vida.

E de fato, Welles transforma a confusão objetiva de Kafka em uma verdadeira confusão grandiloquente, unindo a força de suas imagens por um fio condutor ralo, que se sustenta puxando o absurdo “para cima”. Josef K., o homem que um dia acorda para descobrir que está sendo julgado por um crime desconhecido, procura mais a fuga e o amparo do que solucionar o seu misterioso caso, chegando a ser condenado sem nunca entender a lei.

Basicamente, como expressa o conto “Diante da Porta” que preludia filme e livro, onde um homem morre de velho em frente a uma porta, esperando permissão do soldado sem jamais desafiar a lei, e antes de falecer descobre que a tal porta era destinada a ele e que só não a atravessou por sua subordinação, esse é um filme que questiona, transformando o profundo pensamento sobre a opressão social em um thriller de perseguição, uma dúvida que parecia atormentar os dois autores, o escritor e o cineasta: por que os homens obedecem à lei? Por que os homens não questionam a lei? Por que não a procuram entender? Por que parece tão intransponível? Quem deu poder aos seus representantes?

O thriller de Welles explora de forma expressionista o rosto perturbado e acuado de Anthony Perkins na caracterização de um K. que apresenta o rosto capturado pelas lentes frequentemente distorcido, compondo quadros com outros indivíduos, em ambientes labirínticos, ameaçadores, vertiginosos, que capturam aquele homem de constituição frágil no meio de um turbilhão que não se explica e surge com a finalidade de aniquilar seu protagonista, moralmente e fisicamente.

Welles, ao falar sobre o filme, com suas habituais frases de efeito e bom humor, disse que para ele “a montagem não era um aspecto cinematográfico, era o aspecto” e que “filma feito um exibicionista e monta feito um censor” seguia firme e forte em seu desprendimento do classicismo, montando as imagens grandiosas, gigantes, com horizontes a perder de vista, de forma fragmentária, descontinuada e impactante em seus “golpes” que gritam imagens potenciais a tela. No universo de Welles, o frágil K. de Kafka é perdido na grandeza, mas jamais é enfocado de forma “crescida” - esse papel deixa-se para seus protagonistas, auxiliadores, interesses. Ao contrário de protagonistas como Charles Foster Kane, Macbeth, Capitão Quinlan e Senhor Arkadin, K. nunca transcende e está sempre mistificado com aqueles tetos padronizados infinitos, as gavetas com o dobro de sua altura, as lâmpadas que iluminam tudo em raio de quilômetros.

O notório contra-plongée de Welles dá lugar muitas vezes a uma câmera de esmagamento através do plongée; de intimidade na mediocridade, quando o encara na altura dos olhos; de dessincronia e anacronismo, quando o captura em “ângulos holandeses”, que tornam linhas verticais em diagonais. Tudo está alto demais, distante demais, torto demais, o protagonista está em um mundo estranho onde o que o diretor Welles filmou grande e desesperado, o censor Welles modelou angústia e falta de orientação - nunca se sabe quando iremos olhar K. nos olhos, quando iremos olhar através de um objeto, quando o iremos o olhar de cima, quando estará longe demais para enxergar, quando outro personagem, através da perspectiva plástica triangular consagrada pelo melodrama (um locutor, um interlocutor, um observador), revelará suas limitações, seus tons neutros, sua patética humanidade.

Welles sabia que Kafka não era um íntimo de longa data na construção do seu olhar - William Shakespeare e Joseph Conrad sempre o acompanharam mais de perto - então o que o cineasta optou foi justamente uma apropriação do universo Kafkiano - visto por lentes não muito kafkianas, que transformaram a não ação do enfocado em ação inútil que não resolve o ponto principal, que faz  o determinado confuso um verdadeiro perdido, que tagarela sem rumo por ambientes de um gigantismo além de sua compreensão.

Em Verdades e Mentiras (F For Fake, 1973), Welles questionava os limites da autoria, mas O Processo já demonstra a total liberdade que se dava ao direito, sendo caso de estudo no tocante à adaptação, de autoria, de reimaginação de concepções, de uso de luzes e contrastes para recortar e singularizar um mundo cinzento e padronizado, de abusar dos efeitos pretendidos de altura e movimento de câmera e grandeza de quadro para exteriorizar o que era interno, de montar com secura e fúria nos cortes o que era para ser austero, letárgico, minimalista. Em questões estéticas, Welles respondia à desafiadora parábola do homem diante da porta trespassando limites, bagunçando o que havia encontrado lá e saindo com uma obra definitivamente de sua vontade: a autoria, para Welles, era mais uma ferramenta expressiva do seu universo de sonhos e pesadelos ininterruptos e sem limites, um dos aspectos de seu brinquedo favorito, o cinema, sempre enfrentando o perigo de assumir uma estética pessoal e intransferível para enfrentar a estética totalitária e intransponível. O Processo desponta como um dos filmes mais rebeldes da carreira de Welles - e por isso mesmo, um de seus mais únicos.

Comentários (4)

Josiel Oliveira | terça-feira, 19 de Maio de 2015 - 14:11

O primeiro parágrafo diz tudo. Kafka e Welles são muito opostos, não apenas em sua visão de mundo como também como personalidades. Welles conseguiu se reinventar e traduzir a impotência kafkaniana pro cinema com muito sucesso. Aliás, essa pra mim é a obra prima do Kafka, Metamorfose pra mim é apenas um ensaio estilístico pro que viria a seguir em O Processo.

Rafael Alves | terça-feira, 19 de Maio de 2015 - 15:05

incrível a atmosfera desse filme.

Nilmar Souza | terça-feira, 19 de Maio de 2015 - 15:52

Perturba, realmente. Kafka e Welles não tinha como dar errado.

Josiel Oliveira | quarta-feira, 08 de Agosto de 2018 - 15:03

Nossa.. nem lembrava que tinha comentado aqui rsrs.
Vou só atualizar meu conceito de obra prima do Kafka aqui.. O Processo é muito foda, mas depois li O Castelo e achei ainda melhor.

Faça login para comentar.