Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Em busca da música perdida.

9,0

Quem é Rodriguez?  “No meio dos anos 70, se você entrasse em qualquer casa de classe média, branca e liberal, que tivesse um toca discos e alguns álbuns pop, e se olhasse os discos, sempre encontraria: Abbey Road, dos Beatles; Bridge Over Troubled Water, de Simon & Garfunkel; e sempre veria Cold Fact, do Rodriguez. Para nós, este era um dos discos mais famosos da história.” A frase acima é dita por Stephen “Sugar” Segerman, o dono de uma loja de discos na Cidade do Cabo, África do Sul, que ganhou o apelido de “Sugar Man” em referência ao sucesso absoluto da clássica canção com este mesmo nome, de autoria do cantor folk norte-americano Rodriguez. Com exceção do último disco, a afirmação bem valeria para boa parte dos países do globo naquela época – Brasil, inclusive. Mas, novamente, quem é Rodriguez?

Este descendente de mexicanos, imigrantes de Detroit, que se mudaram para a cidade para trabalhar na indústria automobilística, foi, segundo vários depoimentos deste documentário Searching For Sugar Man (idem, 2012), o autor da “trilha sonora de nossas vidas”. O cantor mais popular da África do Sul. Tão grande e importante quanto Elvis Presley, John Lennon e os Beatles. Maior que Bob Dylan, maior que os Rolling Stones. Sem jamais estar no país, seus discos e suas canções serviram de hinos de protestos contra o apartheid, o regime facínora que segregou e oprimiu o país. Um artista que influenciou todos que vieram depois dele na África do Sul. Em suma, um dos grandes mitos da música mundial. Assim parecia, um fenômeno global, para os sul-africanos que viviam sobre o regime totalitário, isolados do restante do mundo.

Mas por quais motivos eu, você, e provavelmente qualquer outra pessoa no mundo, apreciador da boa música, jamais sequer ouvimos falar desse gênio, desse poeta, desse profeta que mudou o planeta? É isto que esse documentário vem a investigar – com respostas surpreendentes. Primeiro é o fato de que Rodriguez, apesar da altíssima qualidade de suas músicas, nunca sequer fez o mínimo sucesso nos Estados Unidos (conta que ele haveria vendido apenas seis cópias de seus discos por lá), nem em nenhum outro lugar. Fora despedido da gravadora logo após a gravação de seu segundo LP. Jamais tocou em rádios. Seu sucesso na África do Sul jamais foi conhecido por ninguém fora do país. Alega-se que, possivelmente, no início dos anos 70, uma americana em visita a África levou um de seus discos para um namorado que estava lá, e a partir daí, cópias em fitas K7 foram feitas, o boca-a-boca começou, e a subsidiária da gravadora na África do Sul lançou oficialmente os discos no país, vendendo mais de meio milhão de cópias somente na época. O impacto foi tão grande que algumas de suas músicas foram censuradas pelo regime. A única notícia que se tinha de Rodriguez é que ele teve a morte mais chocante e grotesca de toda a história do rock. No auge da depressão e da angústia, ele estava em um show diante dos fãs, quando encheu o seu corpo de gasolina e cometeu um suicídio bárbaro, incinerando-se diante da plateia, agonizando até a morte em cima do palco. Um fim tão trágico e derradeiro que só fez aumentar a sua mística.

Os anos 90 trouxeram a digitalização ao público mundo afora, e agora as pessoas ao redor do planeta consumiam músicas em CD, e a aldeia global e a comunicação ganharam força com o advento da internet. Dois fatores cruciais para trazer novo fôlego ao culto a Rodriguez. No relançamento de seus dois discos em CD, o texto do encarte trazia um texto: alguém sabe algo sobre Rodriguez? Algum detetive musical? Sim, pois com a chegada da internet, foi quando os sul-africanos se deram conta de que Rodriguez não era uma celebridade mundial. E a pergunta que você provavelmente já deve ter feito: onde, e para quem, foi parar o dinheiro da venda dessas centenas de milhares de cópias? Ele teria deixado filhos? Teria família, herdeiros? O que teriam a dizer produtores musicais? O dono da gravadora? E, principalmente: teria mesmo Rodriguez morrido desta forma brutal?

Além dessa curiosa e intrigante história, Searching for Sugar Man é um documentário com um formato brilhante. As imagens dos depoimentos são mescladas com planos gerais de Detroit e da Cidade do Cabo, exibindo ruas desertas, um ambiente desolador, mas ao mesmo tempo profundamente poético. Há uma imensa melancolia e solidão que emana das luzes dos postes, na luz do crepúsculo e do amanhecer. A fotografia é esplendorosa, um trabalho de composição e iluminação belíssimo, algo raro de ser em documentários – sobretudo os dos chamados “cinema direto”, ou “cinema verdade”. A câmera está no tripé. Aqui o documentário da vazão a direção de fotografia altamente produzida, roteiro prévia e cuidadosamente elaborado tal como um filme de suspense, uma edição que lança mão de efeitos de animação, e um ostensivo trabalho de colorização, de “color grading”, o que jamais o torna um documentário menos verdadeiro, como alguns xiitas do documentário costumam pregar.

Para ambientar essa volta ao clima dos anos 70, muitas imagens foram gravadas em película de Super 8mm. Um fato curioso, revelado pelos realizadores em recente artigo na publicação American Cinematographer, é que o rolo de filme 8mm acabou, e, como um socorro de última hora antes da finalização do longa, alguns takes foram utilizados usando um App de iPhone que emula a película de Super 8. Como vem dizendo Bill Nichols em palestras, que é provavelmente o maior estudioso e pesquisador de documentários no mundo, como na que fez na Unicamp no final de 2012, o celular deve se tornar cada vez mais o grande aliado dos documentaristas, seja no cinema direto, como em produções mais requintadas como esta.                                              
                                                                   
Searching for Sugar Man foi, merecidamente, o grande ganhador do Oscar de melhor documentário neste ano de 2013. E de tantos outros prêmios. Sua mensagem é ampla. Sem levantar bandeira ou punho, fala sobre o papel transformador da música em qualquer lugar, em qualquer tempo. Fala do preconceito histórico dos norte-americanos com imigrantes, filhos de imigrantes, sobretudo mexicanos, ainda mais nos idos anos 70. Fala da hostilidade e do jogo sujo da indústria fonográfica. Fala do vazio que é a busca pela fama. Fala da decadência de Detroit, que já vem sendo tema abordado em vários outros documentários de destaque, como em Requiem for Detroit? (idem, 2010) e Detropia (idem, 2012), como na ficção, em Gran Torino (idem, 2008), de Clint Eastwood.  Fala de um astro que esteve a um passo da fama, como em outros documentários, como em Dig! (idem, 2004) e Anvil! The Story of Anvil (idem, 2008).

Mas, sobretudo, Searching for Sugar Man fala direto ao coração do espectador. É muito difícil não se emocionar com o filme, com a obra maravilhosa de Rodriguez e sua história. Um filme para quem gosta de música. Da verdadeira música, não daquela que é feita para ganhar popularidade a todo custo, da música que só serve para aumentar o ego e a conta bancária do suposto artista e do modelo de negócio que o presta suporte. Sem pesar a mão na nostalgia, tampouco no melodrama, é um documentário que fala sobre ideais – musicas feitas como ideal de vida, músicas que refletiam uma ideologia, conscientemente ou não, mas que são de um tempo onde utopias ainda existiam e eram necessárias. E que por isso eram tão boas.

Comentários (4)

Victor Ramos | quinta-feira, 06 de Junho de 2013 - 23:15

Há muito tempo, Ricardo, rs. Ele só anda meio sumido, mas está ativo há tempo.

Jonas | quarta-feira, 03 de Julho de 2013 - 17:47

E foi através dessa maravilhosa crítica que fui assistir esse magnífico documentário. É fantástico!

Faça login para comentar.