Existe uma linha muito tênue entre o que se vive e o que não se entende enquanto se vive. Foi exatamente sobre ela que a cineasta Iva Radivojević decidiu caminhar em Quando o Telefone Tocou, obra que revisita o colapso da antiga Iugoslávia não por meio de discursos inflamados ou narrativas grandiosas, mas pela ótica de quem, à época, sequer compreendia o que estava acontecendo: uma criança.
Tudo começa com uma ligação. Simples. Banal. O tipo de telefonema que ninguém deseja receber, e que, aos olhos da jovem Lana, de apenas 11 anos, carrega um peso desproporcional: a morte do avô. Para uma menina, isso já bastaria como motivo para o mundo desabar. Mas o que se anuncia naquela manhã não é apenas o luto familiar, é também o prenúncio do desmembramento de um país inteiro. A partir dali, o filme mergulha numa espiral de pequenos gestos, rotinas suspensas e silêncios gritantes, que servem como espelho para um território que perde, dia após dia, seus próprios contornos.
Radivojević é hábil ao escolher a contenção como motor narrativo. O drama não reside na exposição dos horrores ou nas cenas de impacto, mas na incapacidade de compreender o que se perde quando tudo muda de forma abrupta. A diretora cria uma mise-en-scène que oprime sem recorrer à violência visual: os espaços são amplos, desertos, mas enquadrados por uma janela quase quadrada, que limita a percepção do espectador tanto quanto a da própria protagonista. A cada plano, somos convidados não a olhar para frente, mas para dentro.
A escolha de um ponto de vista infantil não serve apenas como recurso estético, mas como estratégia política e afetiva. Lana não reage como os adultos. Ela não grita, não se revolta, não exige respostas. Ao contrário, observa. E na sua observação, vai naturalizando a ausência: dos pais, dos vizinhos, da escola, da própria ideia de futuro. O filme, portanto, se alimenta desse vazio. Um vazio que não paralisa, mas que, paradoxalmente, move.
Narrado por uma voz adulta sendo a da própria Lana adulta, o longa se equilibra entre memória e fabulação. O que vemos não é necessariamente o que aconteceu, mas o que ficou, o que marcou, o que não pôde ser traduzido na época. Assim, uma cena banal como um corte de cabelo, um passeio sem destino ou uma dança despretensiosa na sala de casa se revestem de camadas que falam sobre perda, pertencimento e amadurecimento forçado.
A construção estética acompanha essa lógica. A câmera observa sem invadir. Os personagens, quase sempre filmados de perfil ou à distância, parecem existir num estado de suspensão, onde o tempo é uma entidade quebrada, reforçado pelo relógio que permanece congelado no exato instante em que o telefone tocou. E se as atuações soam minimalistas, quase antinaturais, é porque a proposta não é realista no sentido clássico, mas sim sensorial: trata-se de capturar uma atmosfera, não uma sequência de eventos.
O filme também permite, em momentos pontuais, furar a bolha do silêncio. Como na cena em que duas meninas, através de olhares e palavras que nunca ouvimos, declaram seu amor. A trilha some, o foco se fecha num olho marejado e, pela primeira vez, sentimos que há algo que resiste, algo que não será arrancado, nem pela guerra, nem pelo tempo.
Mas Quando o Telefone Tocou não é um filme sobre guerra, e se recusa a ser também. Seu interesse não está no conflito direto, e sim nas rachaduras que ele provoca na subjetividade de quem o atravessa sem saber exatamente como ou por quê. É, sobretudo, uma história sobre como se cresce quando não se tem escolha. Sobre como se aprende a viver num lugar que, de repente, deixou de existir.
E se há quem possa considerar sua proposta excessivamente minimalista, quase fria em determinados trechos, o que se percebe ao fim da sessão é que esse era o único caminho possível. Porque nem tudo que se rompe faz barulho. Às vezes, tudo que se ouve é o toque de um telefone.
Filme assistido no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
Huuuuum! Gostando de ver, tem gente acompanhando o Festival de Curitiba, postando críticas. Espero que façam isso com o do Rio em outubro. Senti falta ano passado!