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Críticas

Cineplayers

Em 'Um Quarto em Roma', Medem observa duas garotas entre transas e confissões.

5,0

Será que a carreira de Julio Medem virou o fio? Entre 1992, ano de lançamento de Vacas (idem), seu primeiro longa-metragem, e 2001, quando dirigiu Lúcia e o Sexo (Lucia y el Sexo), passando por O Esquilo Vermelho (La Ardilla Roja, 1993), Terra (Tierra, 1996) e Os Amantes do Círculo Polar (Les Amantes del Círculo Polar, 1998), Medem construiu uma filmografia que, embora curta, era no mínimo bastante satisfatória. Podia-se até não gostar dos resultados finais, mas era inegável que seus cinco primeiros filmes formavam um bloco coerente tanto no estilo quanto na temática. A partir daí a coisa parece ter degringolado. Ninguém entendeu o que o diretor quis dizer com Caótica Ana (idem, 2007), uma verdadeira salada mista sobre uma mulher e suas vidas passadas. Três anos ele volta à cena com esse Um Quarto em Roma. Apesar de ter o mérito de ser um projeto que vai no extremo oposto de seus trabalhos anteriores (o que revela um artista em constante renovação), o resultado, infelizmente, está bem aquém do alcançado pelo diretor no início de sua carreira.

Medem inicia sua narrativa com o plano de uma rua vazia. É noite. Escutamos a voz de duas mulheres se aproximando. Elas conversam relaxadamente. Aparentemente estão um pouco alcoolizadas. Aos poucos, entram no nosso campo de visão. Uma morena e outra loira. Alba e Natasha. Elas acabaram de se conhecer num bar. Mesmo não sabendo nada uma da outra, o papo rolou solto entre as duas. A afinidade foi instantânea. Agora, o horário avançado as obriga a se despedirem. É a ultima noite de ambas em Roma. No dia seguinte pela manhã, elas partirão para seus respectivos destinos. Alba voltará para a Espanha. Natasha, para a Rússia. Elas se deparam com o hotel onde Alba está hospedada. É hora de se despedirem. Há um clima sensual no ar. Alba pede a Natasha que suba ao seu quarto. Natasha sente-se insegura. Seu lado racional recomenda recusar o convite, afinal ela nunca havia passado a noite com outra mulher. Mas a tentação é mais forte e ela se deixa levar pela fantasia. Isoladas do mundo exterior, as duas embarcarão numa jornada de sexo, revelações e angústias.

À medida que a noite avança, vamos conhecendo um pouco mais sobre os seus passados. Alba é engenheira. Desenvolve novos protótipos de locomoção pessoal. Ela é homossexual. Tinha um relacionamento estável com Edurne (Najwa Nimri). Mas uma tragédia pessoal colocou um muro invisível entre as duas e o futuro de ambas é incerto. Natasha é tem uma irmã gêmea. Ela é modelo (ou estudante de arte romana) e a irmã, tenista profissional. Mas pode ser o contrário. As confissões iniciais de ambas, ainda carregadas de desconfianças, podem ou não ser verdade. Natasha está com casamento marcado para dali a uma semana.

Medem parece transformar o quarto numa espécie de confessionário. Consumidas por seus dramas pessoais, aquelas mulheres terão que se desnudar dos seus passados, dos seus preconceitos, das suas vergonhas, dos seus valores, e até mesmo das suas roupas. Somente assim, o íntimo de cada uma virá à tona. Aqui fora, quem sabe, haverá uma cura possível.

Medem posiciona sua câmera dentro do quarto e de lá não sai durante toda a projeção. O primeiro plano, da rua vazia, é filmado do ponto de vista do terraço do hotel. Quando as mulheres decidem subir, o diretor faz um elegante travelling de retrocesso para o interior do cenário, passeando lentamente pelo quarto, até chegar à porta. O único acesso ao mundo exterior é por meio de recursos tecnológicos. Por meio de mapas virtuais, Alba e Natasha, pontos minúsculos no universo, se localizam na imensidão do mundo exterior. Pelo celular, conhecemos a namorada de Alba.

Com a concentração do filme num único cenário, Medem parece querer dizer que suas heroínas receiam tudo aquilo que se encontra fora dali. O nome de Alba indica isso. Alba, em espanhol, significa amanhecer. O pôr-do-sol não mais garante a auto-preservação. Ele representa a necessidade de enfrentamento dos fantasmas da vida real: de um lado, Alba não sabe se conseguirá superar as barreiras que a afasta da sua namorada; de outro, Natasha tem dúvidas em relação ao seu noivo. Em certo momento da madrugada, logo após o enésimo orgasmo, Natasha pede a Alba que não comente com ninguém o que acabara de ocorrer. Ela sabe que, enquanto aprisionada dentro das quatro paredes, aquela relação lésbica permanecerá um eterno segredo. O quarto é o porto-seguro (o ventre materno?). O futuro, um terreno desconhecido.

Essa busca pela auto-preservação faz com que o sexo entre ambas seja exasperado, apressado, animalesco. Mais que o prazer carnal, aquelas duas belas mulheres vêem na transa um modo de fugir das suas realidades, um passaporte para as redenções pessoais e a felicidade que teima em não vir. Em outras palavras, Um Quarto em Roma está mais próximo de Bernardo Bertolucci, de O Último Tango em Paris (Ultimo tango a Parigi, 1972) e Patrick Chéreau, de Intimidade (Intimacy, 2000), do que Jean-Claude Brisseau (Os Anjos Exterminadores [Les Anges Exterminateurs, 2006]).

Um Quarto em Roma é oficialmente inspirado no filme chileno Na Cama (En La Cama, 2005), de Matias Bize (que, por sua vez, já fora refilmado no Brasil com o título Entre Lençóis). Para quem que se acostumou a trabalhar com roteiro próprios, pode ter sido difícil para Medem transitar por um universo criado por outra pessoa. Talvez o que tenha atraído o diretor espanhol ao projeto foi a oportunidade de explorar a temática da sexualidade feminina, presente em quase todos os seus filmes. Mas o confinamento da ação num único lugar limitou o campo de ação de Medem. O cinema de Medem exige espaço. A geografia dos cenários exerce papel fundamental nas histórias (foi assim com a praia e o acampamento de trailers, em O Esquilo Vermelho; a ilha, em Lucia e o Sexo; a Finlândia, em Os Amantes do Círculo Polar, a ilha de Ibiza, em Caótica Ana). Seus personagens se recusam a ficar estáticos. Antes disso, correm atrás dos seus destinos. Um Quarto em Roma é a antítese do estilo de Medem e esse seu desconforto é visível no resultado final.

Além disso, Medem optou por um formato minimalista de filmar, sem muitos artifícios, quase teatral. Mais uma vez a escolha vai contra a sua própria assinatura. Medem faz um cinema rasgado, exagerado, deliberadamente over the top. Não seria exagero dizer que, em certos momentos, Julio Medem é um Pedro Almodóvar sem o melodrama. Ao concentrar toda a trama dentro do quarto, o diretor não encontrou espaços para exercitar o que faz de melhor. Ele até encontra soluções plasticamente bonitas, como o travelling inicial, o uso dos espelhos (há um belo plano do reflexo das duas atrizes), a oposição do escuro do quarto com o branco imaculado do banheiro, e o plano final, em que a bandeira hasteada na frente do hotel parece simbolizar uma mudança no mundo das protagonistas. Mas, no geral, sua câmera parece estar presa a uma camisa de força, limitada, quase envergonhada.

Medem parece não ver o sexo masculino com bons olhos. Alba não conheceu o pai. Também nunca se relacionou sexualmente com um homem. Já o progenitor de Natasha (ou a irmã, dependendo da versão que se acreditar), abusada da filha. O funcionário do hotel, não é bem vindo naquele quarto. E os símbolos fálicos são meio que ridicularizados por meio de garrafas e pepinos. Em Um Quarto em Roma, os homens estão realmente por fora.

O elenco apresenta falhas. Elena Anaya, que já trabalhou com Medem em Lucia e o Sexo, defende bem o papel de Alba. Acreditamos na sua homossexualidade, no modo como ela toma as rédeas durante o ato sexual, e no seu dama pessoal com a namorada. Já a novata ucraniana Natasha Yarovenko derrapa várias vezes na composição da frágil e insegura Natasha. Além disso, ambas as atrizes não se mostram 100% seguras na língua inglesa.

Um Quarto em Roma representa um pequeno avanço do diretor em relação a Caótica Ana, seu filme anterior, mas ainda está longe de alcançar a qualidade dos seus primeiros trabalhos. O público perdoou Medem do deslize anterior. Resta saber se ele ainda terá crédito para ser perdoado desse também.

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