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Críticas

Cineplayers

Quase Cony, quase Ruy.

8,0
Quase Memória é o resultado de um cineasta de muitos cinemas. O moçambicano Ruy Guerra despontou para o mundo na época do Cinema Novo graças a Os Cafajestes e Os Fuzis, filmes que abandonaram os estúdios, rodados em locações, abordando temáticas espinhosas e ousadas. Já nos anos 80 em diante, Ruy era o cineasta de A Ópera do Malandro, Erêndira e o Veneno da Madrugada, filmes mais plásticos, delirantes, de temática não tão social mas já um tanto introspectiva.

Sua adaptação de Quase Memória, Quase Romance, de Carlos Heitor Cony, é uma versão extremamente pessoal de uma narrativa extremamente pessoal. Escrito após um hiato de vinte anos, o livro ganhou o prêmio Jabuti de 1995 ao promover um encontro sem limite definido entre ficção e memória. A forma como isso aparece no filme de Ruy Guerra é o encontro de Carlos (Charles Fricks) com um homem que tudo leva a crer que é uma versão futura dele mesmo (Tony Ramos). Um embrulho de conteúdo enigmático chama a atenção dos dois enquanto, de maneira evocativa, o homem e suas personas relembram histórias do pai (João Miguel), um jornalista cheio de manias e loucuras que vive casos intimamente ligados com a história do Brasil.

A memória que Ruy invoca e encena é uma memória tal como a do cinema, ficcionalizada, estranhada com seu compromisso com o real, percorrendo o caminho assumido como gênero: de tom tragicômico, colorido e distorcido, se contrapõe às poucas cores e o absurdismo do quarto onde Carlos reina em tempo suspenso. Esse tempo suspenso distorce o Brasil nostálgico, onde a mentalidade política daqueles tempos e a mentalidade política de hoje não possuem relatos fiéis próprios das reconstituições, mas se preocupam mais com seu impacto sobre os protagonistas: daí que questões abordadas se fundem em diferentes encenações costuradas entre si de forma pouco exata, e o que obtemos daí é um filme episódico, fragmentário.

O Carlos, alter-ego de Cony, está preso entre a indefinição do presente e futuro, mergulhado em sombras, diálogos filosóficos, monocromatismo; seu pai, Ernesto, interpretado por João Miguel de maneira cômica ao melhor estilo do cinema mudo, vive de maneira quase experimental, e filtros, ângulos e movimentos de câmera pouco usuais, enlouquecendo a esposa e aparecendo nas memórias do filho como a persona atrapalhada, imprevisível e desordeira.

Em certa parte, Quase Memória é como Ópera do Malandro, teatral e farsesco sobre a infância e sobre a história, onde um jornalista exagerado enlouquece a mulher e fascina o filho, impressão reforçada pela aparição de uma excêntrica trupe de teatro, lá pelas tantas. Em parte, é o Ruy sombrio e radical de Os Cafajestes e Estorvo, que aposta sem concessões na reflexão subjetiva. Nesse encontro entre muitos Conys, surge o encontro entre muitos Ruys, onde a abordagem frontal entre o excesso e a sobriedade é tanto mérito como problema de um filme desgovernado, propositadamente enigmático, uma investigação sobre o passado que só um dos grandes cineastas surgidos na época mais libertária e experimental poderia conceber. O quase-romance, quase-memória de Cony transborda em quase-tempos e quase-espaços no filme de Ruy, livre e vital como há muito tempo não se via.

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