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Críticas

Cineplayers

Os quatro estágios da vida.

7,5

Como um filme que preza a construção espacial, com os enquadramentos e formas sendo imperativos na construção da imagem tempo de Michelangelo Frammartino, em um diálogo direto com a ideia de fases que o filósofo e matemático Pitágoras teve na cidade de Calábria, onde se passa a história do filme, em que a vida passaria por quatro fases diferentes (humana, animal, vegetal e mineral), onde tudo estaria no final das contas conectado – As Quatro Voltas (Le quattro volte, 2010) recusa um protagonisto humano, ou seja, fazer com que a câmera não sirva, exclusivamente à figura humana.

Como todo o filme é produzido dentro desse firme compromisso estético, os exemplos são muitos: os planos distantes buscam não se aproximar, recusando uma estrutura tradicional, drama ou psicologismo. Essa relação entre posicionamento estético e discurso torna a relação entre planos a estrutura de uma trama vital sem eventos que envolvam a pathos ou a estrutura teatral, mas antes uma historiografia natural, enfocada numa perspectiva que recusa o antropocentrismo – nenhuma forma de vida prevalece sobre a outra, cabra e homem tem igual importância dentro de um quadro.

No filme de Frammartino, o que pensamos ser o close de um rosto, talvez seja o plano geral de uma formiga andando sobre o rosto de um homem. A ambiência sonora revela a pulsação por trás de eventos aparentemente mundanos: vozes humanas berrando, automóveis funcionando, cães ladrando, carvão crepitando. Antes de serem sequências fabulatórias, são sequências que permitem que o fluxo da natureza que se desenrola ante a tela floresça dentro do rigor formal da moldura e intervir na ficção. Na ficção do filme nasce de verdade um cabrito que aprende a andar, a se relacionar com o mundo, a se desenvolver e aventurar-se fora do útero materno. Madeira é queimada de verdade, transformada em matéria morta.

Tudo em As Quatro Voltas se relaciona com a vida, onde mesmo aprisionado dentro do enquadramento – o termo “enquadrar”, vindo das touradas, faz referência a literalmente matar ou prender a realidade, o que é vivo, dentro de um processo elétrico de captação e representação – nós sabemos que tudo ali passa por um processo inevitável de crescimento, desenvolvimento e falecimento. Distanciando-se do heroísmo, Frammartino compromete-se com outra ordem de narração, outra ordem de representação, com o distanciamento necessário à observação da vida. Dentro desse cinema que trabalha com fluxos, a obra pode até não ser definitiva, mas é um exemplar palpável de como trabalhar uma relação entre o real e o projetado em pleno século vinte e um, longe de grandes centros urbanos, para repensar questões fundamentais à nossa compreensão de vida.

Onde termina, As Quatro Voltas também recomeça. Contemplar cada segundo de vida, contemplar macroestruturas modificando-se, decaindo e reconstruindo-se de forma imperceptível aos nossos olhos, é a forma que o filme encontra de nos obrigar a prestar atenção caso surja o interesse de se chegar até o final da metragem. As Quatro Voltas escapa de ser apenas ficção ao permitir sob o seu teto a intromissão da realidade, o que o distancia de outros exemplares que utilizam a ambiência sonora para nos fazer sentir a vida pulsando por trás do que chamam de “parado”, e também não é apenas registro inconsciente por intervir na construção através da perspectiva, da ordenação das sequências, do formalismo que aprisiona natureza e espectador dentro do ambiente que é projetado para nos fazer perceber, através do som, do quanto há além da moldura, do quanto nada é definitivo ou absoluto como muitas vezes pretende a fabulação.

As Quatro Voltas é um estilo de exercício, hoje em dia, arriscado e radical, que segue um conceito não muito distante de outros cineastas que trabalham com a construção espacial, da ideia de imagem-tempo de Delleuze (que quer revelar o real, não apenas representar uma convenção, a obrigação da participação do espectador e não apenas do didatismo condicionante), dos limites entre ficção e realidade, entre fábula e documento. Ao recusar o antropocentrismo e apostar nas tramas que passam de forma despercebida na frente dos nossos olhos, Frammartino ergue uma obra que, ainda que irregular ou mesmo sólida, antes de desafiar o espectador, antes de provocar, convida à vida.

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