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Quem Cantará as suas Canções?

(Quién te cantará, 2018)
6,7
Média
3 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Conflitos e memórias perdidas

6,0

Este texto contém spoilers

A seguinte frase, atribuída a William Shakespeare, se relaciona com “Quem Cantará as suas Canções?” de maneira muito acertada. “Lembrar é fácil para quem tem memória. Esquecer é difícil para quem tem coração”. Aspas aqui colocadas para explicar, talvez, o grande intuito do filme com sua protagonista sofrendo de amnésia. A ótima Najwa Nimri é quem interpreta essa personagem central esquecida, desmemoriada. Não por deliberação, que se diga, mas por um acidente que lhe ocorrera. O trato do filme com ela é de nos direcionar ao seguinte entendimento: muito embora não se lembre inicialmente, com tranquilidade, de fatos pretéritos importantes de sua vida, uma relação com sua admiradora Violeta virá para tudo mudar.

A abordagem do cineasta Carlos Vermut (nome promissor no cinema espanhol) aqui é clara e logo na introdução percebemos que pode ser o caso de uma obra mais contemplativa e preenchida de silêncios reflexivos. A confirmação vem não muito depois. O filme é mais silente do que amplamente verbalizado com fins de ser explicado nos tintins. Está mais para sinestésico. As cenas iniciais exemplificam isso. Lila sai do hospital para casa, senta na varanda, conversa em poucas palavras com sua amiga, percebe estar com dificuldade para relembrar coisas e fica um tempo olhando para as ondas do mar que rebentam na praia, um verdadeiro quintal daquela propriedade. Muitos enquadramentos pouco amplos, a maioria mais fechados explorando o olhar aparentemente para o vazio refletindo sobre uma vida que fora e não é mais.

Detalhes? Eles não vêm ainda. O acidente na praia deixa Lila sem a preciosidade do que chamamos memória. Ela sabe, através de sua amiga Blanca (Carme Elias, outra em ótima performance), que foi uma cantora de sucesso nos dez anos que passaram, mas que agora tudo mudara. Vermut filma essa conversa, por exemplo, de maneira muito pausada e entrecortada por momentos de mudo, de total ausência do som. Por vezes também delimita o quadro no batente da porta, como se este fosse o limite naquele 16:9, nos colocando ali como testemunhas próximas de um quarto, olhando para seu interior onde o íntimo se desenrola. Algo que contribui ao espectador mais paciente e que não estranhe esse tipo de condução, uma vez que se mostra uma opção artística para valorizar, além do que é dito, o que é sentido por aquelas personagens. Uma mais confusa sobre o que acontecera a si e outra tentando descobrir uma maneira de tratar a amnésia da colega.

Todo o primeiro ato do filme é mais escuro dentro de uma cinematografia muitíssimo bem trabalhada e harmonizante com planos elegantes e até econômicos por assim dizer concebidos pelo Vermut, que compusera um trabalho estético igualmente notável no seu A Garota de Fogo (2014). Algo que pode ter sido optado para sugerir a sombra que Lila estava vivendo com aquele esquecimento que tomava conta. Logo as coisas começam a clarear na fotografia com o início das intervenções de Violeta, que conhece Lila por acaso num passeio na praia a noite. Mesmo local do acidente de Lila, o que se revelará um paralelo cinematográfico interessante quando o filme mais adiante mostrar a transformação operada por Violeta na vida de Lila. Nesse processo pré intervenção de uma na vida da outra é que provavelmente Vermut cometera seus deslizes.

O cineasta pretende explorar, a partir de uma narrativa mais slow, com uma combustão mais lenta e prolongada dos fatos - gerando picos dramáticos que demoram a se abater sobre as personagens - os pequenos conflitos tanto de Violeta com sua filha de ações intempestivas quanto de Lila perdida em sua mansão, legado de um passado de sucesso, em meio às tentativas de recobrar o que era para o mundo a seu redor. O ponto de interseção entre as duas personagens também é trabalhado pelo diretor, em um contracenar cheio de química. Mas sinto falta do elemento música como pilar dessa gangorra dramática, ora puxando para o lado dos dramas cotidianos de Violeta ora para a solidão pós fama de Lila.

É um filme que muito se propõe a esmiuçar, por exemplo, a relação mãe e filha dada pelo embate entre Violeta e Marta. Me lembra muito Almodóvar, que registra de maneira agridoce essas relações. Mas o filme, quando parece enveredar de vez para a chave do canto e das apresentações, equilibrando tudo sobre a temática musical, envolvendo carreira e fama, volta para esse imbróglio familiar que parece muitas vezes uma afetação indie, uma reiteração chata. Não é mal encenado, mas acaba por diluir a força do filme e de sua linha principal. Deixa a obra um tanto quanto desinteressante. Vez ou outra, algo que também incomoda é a lentidão excessiva em pontos de virada, quando um bloco do filme se encerra para dar início a outro.

No terceiro e último ato as coisas se compensam, em especial num diálogo entre Violeta e Lila recheado de revelações. É quando Vermut sai daquela alternância entre morosidade e letargia ou distrações com núcleos pouco convincentes e parte para a frontalidade do debate pós-terapêutico. Lila revela a importância de sua falecida mãe, também cantora, ao optar pela carreira musical e os desgastes com a mesma pelo vício em heroína. Lila teve de ajudar a mãe a escapar dessa dependência nada fácil de lidar. Vermut deixa a câmera estática para que Lila vá revelando esse e outro ponto que também acho bastante interessante. Ela confessa que trabalhou muito em cima de músicas da mãe, reformando-as e ajustando-as para vendê-las e performar sobre elas como se suas fossem. Um conflito familiar e de autoria é estabelecido. Eis um momento em que somos fisgados por algo que deveria estar mais centralizado no filme, mas que fica meio deslocado na maior parte do tempo em meio a uma narrativa competente e bem charmosa, especialmente pela decupagem meio formal e meio onírica do diretor, porém travada e de lampejos.

Sem dúvida esse é o mais alto ponto do filme, onde feridas são expostas e de fato uma conversa que não é banal se estabelece. Compreendo que todo o filme é um longo processo para que Lila retome aos poucos suas memórias, mas o trajeto é deveras vagaroso e, embora bem embalado por uma ótima trilha sonora, parece patinar no mesmo lugar. Gera a sensação de indiferença com as protagonistas. Há um lado bom ser esse um projeto mais frio, mais zen e meditativo, mas por outro esvazia o filme de conversas reveladoras e de fato instigantes como vemos no último ato, quando as memórias da protagonista começam a explodir violentamente. No fim, um sentimento misto, mas pelo menos não acerca de uma obra medíocre, mas uma com seus méritos e predicados. Lila pode até ter perdido algo de sua capacidade reminiscente, mas, retomando a frase com que iniciei este texto, mostrou que ao lembrar de um único fato que fosse de sua vida, quer seja dos discos lançados ou de percalços, tinha algo chamado coração.

Se o filme, embora bonito pelo viés estético da coisa e até mesmo por uma unidade de estilo bem definida, passou a maior parte do tempo no fogo baixo, ao menos esse final colocara um pouco de carvão na locomotiva.

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