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Críticas

Cineplayers

Uma das maiores explosões de originalidade vindas de Hollywood nas últimas décadas.

7,0

Às vezes, nos deparamos com certas histórias que são aparentemente impossíveis de serem transportadas do papel para as lentes de uma câmera. Executivos de estúdio devem saber muito bem disso, aliás, pois provavelmente já tenham lido diversas delas – mesmo que seja bastante duvidosa a probabilidade de eles lerem alguma coisa antes de aprovarem, atualmente (caso contrário, filmes como As Branquelas ou O Pesadelo jamais poderiam ter sido lançados, nem mesmo por uma produtora de fundo de quintal). À primeira vista, Quero Ser John Malkovich, primeiro roteiro para cinema escrito por Charlie Kauffman, parece ser um legítimo representante da classe dos filmes irrealizáveis – e confesso que, antes de assisti-lo pela primeira vez, restava duvidosamente intrigado quanto à funcionalidade de uma trama tão absurda quanto esta.

A boa notícia é que Quero Ser John Malkovich não só é um excelente trabalho cinematográfico, como também uma das mais inteligentes, sarcásticas e autorais obras lançadas em Hollywood nos últimos dez anos. Esta constatação, na verdade, não deve ser levada apenas como uma simples opinião da pessoa que vos escreve. É uma regra intransferível, inviolável, que quebra com qualquer discurso relacionado à subjetividade da análise cinematográfica, entre outros blablablás. E isso não quer dizer que todos devam gostar do filme (longe disso, a gama de detratores também não é pequena), apenas admitir que, em toda a longa e preciosa história da sétima arte, coisa semelhante jamais havia sido filmada – se já fora, confesso que desconheço a origem e, neste caso, tudo isso se trata apenas da visão de um cego.

A obra narra a história do medíocre titereiro Craig, homem desempregado que passa os dias encenando peças nas ruas da cidade – sem qualquer reconhecimento. Com a insistência de sua mulher para que arranje um emprego, sai em busca e arranja uma vaga como arquivista em uma empresa. Detalhe: ela se situa no andar sete e meio de um edifício comercial, no qual o teto é tão baixo que as pessoas precisam andar encurvadas durante o tempo todo. Em sua nova sala, atrás de um armário, Craig encontra uma misteriosa porta que, logo depois, descobre se tratar, na verdade, de um portal que leva diretamente para dentro da mente de John Malkovich – na qual permanece durante quinze minutos, antes de ser jogado no acostamento de uma rodovia. Junto de uma colega de empresa, pela qual está perdidamente apaixonado, começa a utilizar o portal como forma de faturar dinheiro em cima de pessoas tão medíocres quanto ele, vendendo a idéia de fazer com que elas sejam outra pessoa durante quinze minutos de suas insignificantes vidas.

Por detrás dessa trama absurda e explosivamente bizarra, Quero Ser John Malkovich nada mais é do que uma gigantesca e inteligente brincadeira metalingüística com o próprio “Ser”. Munido daquela típica e insalubre vontade, tão constante em cada um de nós, de quere ser aquilo que não somos, de passar a vida apreciando aquilo que não temos, Charlie Kauffman nos apresenta uma história instigante na qual metaforiza estas e muitas outras suscitações através da persona de um manipulador de marionetes – aliás, o próprio protagonista, representado por John Cusack em grande atuação, avalia sua predileção pela profissão de titereiro como um pretexto para poder viver imerso na ficção constituída através dos bonecos (a qual utilizava até mesmo para deixar aflorar seus próprios sentimentos, como na seqüência em que encena um diálogo romântico com a mulher que deseja ter).

É interessante ressaltar que tantos elementos “anormais”, por assim dizer, juntos, poderiam resultar em um filme estrambótico e completamente adornado por cenas transloucadas, sem o menor sentido. Entretanto, a linha condutória da narrativa é muito firme, fazendo com que todas as surpresas e reviravoltas da trama (acreditem, são muitas mesmo) não se contraponham aos acontecimentos anteriores – formando assim um processo de continuidade. E, mesmo que este seja um mérito próprio de Kauffman, autor do roteiro da obra, não podemos deixar de mencionar a importância da direção de Spike Jonze para sua funcionalidade (seria com Jonze, aliás, que Kauffman viria a realizar anos mais tarde outra de suas obras-primas, o sensacional e auto-analítico Adaptação – em minha opinião, o segundo melhor trabalho do roteirista, perdendo apenas para aquele que considero um dos três melhores filmes deste novo século, Brilho Eterno de uma Mente Se Lembranças).

Jonze, como diretor, é muito mais contido, no que concerne à decupagem de suas obras, do que o outro parceiro constante de Kauffman, Michel Gondry (com o qual fez, além de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, o divertido A Natureza Quase Humana). Essa seguridade naturalista, muito mais “pé-no-chão”, indo de encontro à realidade, serve como contrapeso às alucinações constantes do argumento do roteirista, travestindo Quero Ser John Malkovich como uma leve “história da vida real” – o que garante ainda mais a funcionalidade da referida metalinguagem. Tão importante é essa característica de Jonze para a obra, que acredito veementemente no fracasso da produção, caso esta fosse dirigida por alguém como Gondry, cujo estilo é muito mais artificializado - algo que se encaixa perfeitamente em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, por sinal, já que a obra se passa quase que inteiramente dentro da cabeça do protagonista.

Após a explosão de subtramas malucas representada pelo terceiro ato, que fecha com chave de ouro o circo de bizarrices e muito sarcasmo (o filme ainda brinca com muitos outros fatores ligados à fama, ao glamour e, porque não, à ociosa sociedade moderna), Quero Ser John Malkovich representa uma das últimas injeções de criatividade recebidas por Hollywood nos últimos tempos. É uma obra de arte genial, provinda da mente extremamente criativa de Charlie Kauffman, um dos autores mais originais do cinema contemporâneo, e um dos mais interessantes filmes da década de 1990. Por fim, deixo minha sugestão a todos os roteiristas atualmente em atividade lá pelos lados de Hollywood: se possível, largar tudo aquilo que estão fazendo no momento, e se concentrar em apenas um objetivo: querer ser Charlie Kauffman. O mundo do cinema agradeceria por isso.

Comentários (5)

Landerson DSP | sexta-feira, 17 de Maio de 2013 - 20:02

Quero Ser John Malkovich é um daqueles filmes que te prende a cada minuto de sua duração(eu fico pensando como Kauffman consegui pensar numa história dessa?).
P.S: Quero Ser Charlie Kauffman poderia ser o nome de um filme que homenageia Kauffman.
P.S: Você disse que considera Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças um dos três melhores filmes deste novo século. Quais são os outros dois?

Cristian Oliveira Bruno | quarta-feira, 04 de Dezembro de 2013 - 18:09

Que o filme é ótimo, todos sabem. O que eu queria saber é por que diabos John Malkovich? Sou fã do cara, mas pq ele???

Raphael da Silveira Leite Miguel | quarta-feira, 04 de Dezembro de 2013 - 19:10

Landerson, pelas notas do Dalpizollo os outros dois são Cidade dos Sonhos (2001) e Kill Bill - Volume 1 (2003).

Até hoje não entendo por que John Malkovich também.

Landerson DSP | quarta-feira, 05 de Fevereiro de 2014 - 14:16

Talvez no roteiro original não havia especificação de ator(talvez na história original era um ator fictício), mas quando o John Malkovich aceitou o papel o Kauffman adaptou a história.

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