Saltar para o conteúdo

Rashomon

(Rashômon, 1950)
8,6
Média
400 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Quando Kurosawa desconstruiu a narrativa

10,0

Derrotado na Segunda Guerra Mundial, o Japão sofreu uma avassaladora derrota: as cidades de Hiroshima e Nagasaki foram destruídas pelas bombas atômicas derrubadas pelos Estados Unidos em retaliação ao ataque a Pearl Harbor. O imperador japonês Hirohito assinou a rendição e só não foi deposto pelos vencedores porque o povo considerava o chefe de Estado como um Deus, e apenas o Primeiro Ministro Hideki Tōjō foi julgado e condenado à morte. Mas havia um germe crítico no ar: o que tiramos dessa obediência cega a uma história? E como ficou o país depois disso? Para responder a isso, o cineasta do pós-Segunda Guerra Akira Kurosawa olhou para duas obra pós-Primeira Guerra, os contos "Rashomon" e "Dentro de Um Bosque", de Ryūnosuke Akutagawa.

"Rashomon", o conto de 1915, foi escrito durante o período Taisho, governado pelo Imperador Yoshihito, um período de inspirações democráticas e liberais que consolidava o fim do feudo (Xogum) da Era Meiji. Conta a história de um homem que, após perder o emprego, contempla se tem que começar uma vida de crimes para não morrer de fome  decisão que acaba sendo influenciada quando encontra uma mulher que trapaceia em nome da sobrevivência. Já "Dentro De um Bosque" (1922) é resultado da infusão ocidental nas histórias japonesas, demonstrando uma história quebrada em perspectivas: um bandido é julgado por estuprar uma mulher e assassinar seu marido, um samurai. O revés: a mesma história é contada a partir de quatro perspectivas diferentes: o bandido, a mulher, o samurai (através de um médium) e um lenhador que testemunhou sem participar do caso.

Ao realizar o seu Rashomon (Rashômon, 1950), Kurosawa adaptou o escrito de Akutagawa, fazendo da primeira história uma “moldura” da segunda: produzido pela Daiei como uma adição ao filão Jidageiki (dramas de época feudais) passada no portão de "Rashomon", uma terra devastada usada para abandonar bebês e desovar cadáveres, onde um lenhador conta ter testemunhado a perturbadora história da violência sexual seguida de assassinato sobre o qual ninguém era capaz de chegar a um consenso.

O filme foi a quinta colaboração de Kurosawa com o ator Toshiro Mifune (de um total de 16), que, como o bandido, trouxe um modo intenso de atuação, muito físico e estilizado, com larga influência do teatro kabuki, o teatro de máscaras japonês, emprestando algo de fantástico e maior que a vida à narrativa. A composição um tom acima que o ator demonstrou em sua primeira obra de época com o cineasta o faria ser escalado novamente como o espadachim bruto e enérgico em outras obras, como Os Sete Samurais (1954), Trono Manchado de Sangue (1957), A Fortaleza Escondida (1958), Yojimbo: O Guarda Costas (1961) e como o lendário Musashi Miyamoto na trilogia Samurai de Hiroshi Inagaki.

Aqui, Kurosawa criou uma espécie de quebra-cabeças, um quadríptico onde cada história expressa uma visão moral frequentemente perturbada, sem valores ou fé na humanidade ou na fé. Pensando dessa forma, Rashomon foi um dos primeiros filmes japoneses a ilustrar conflitos modernos através do enfoque de períodos conflituosos antigos (Harakiri [1962] e Onibaba -  A Mulher Demônio [1964] sendo outros bons exemplos posteriores), fazendo com que a história tenha um tom alegórico atemporal, pois muito pouco parece ter mudado.

Pois, afinal de contas, ao explorar múltiplas histórias dentro de uma história, Rashomon é um filme também sobre a falência da narrativa clássica, artística e socialmente: o Japão, seguindo cegamente ordens durante seu período fascista conhecido como Nacionalismo Showa, acabou criando destacamentos de pilotos suicidas, cometendo crimes contra a humanidade e pagando com um custo humano altíssimo (procurem ler "Gen - Pés Descalços" e ver O Túmulo dos Vagalumes [1988]). A mentalidade “Japão acima de todos” fracassou e aquela realidade não parecia mais fazer sentido; uma nova história precisava ser buscada. Mas qual?

Este é definitivamente um questionamento que marcou a segunda metade do século XX, desde correntes filosóficas como o existencialismo e o estruturalismo até os novos cinemas que surgiriam entre as décadas de 40 e 50. Esse modo de encarar a verdade como construção convencionada tem suas origens no modernismo, mas alcançava um apogeu de maturidade aqui, já que, como podemos ver no filme em questão, as ideias das impossibilidades da perspectiva única eram abordadas de forma radical e sofisticada.

Na composição cênica, Rashomon foi muito elogiado por diretores como Robert Altman (O Jogador) pelo aspecto “misto” ou “manchado” com que seus atores são iluminados, misturando luzes e sombras no seu rosto, com potenciais para o bem e para o mal — ou para a mentira e para a verdade, no caso, uma técnica tirada do cinema noir que Kurosawa já usara em suas iterações policiais O Anjo Embriagado (1948) e Cão Danado (1949). A cinematografia de Kazuo Miyagawa (também fotógrafo em clássicos como Contos da Lua Vaga [1953], O Intendente Sansho [1954] e Ervas Flutuantes [1959]) decerto contribui com sua inventividade, abusando da dinâmica de close-ups, composições visuais “rimadas” entre histórias diferentes e, em um aspecto particularmente marcante, a frontalidade da obra.

Sim, esse é um elemento a se destacar aqui por um motivo muito simples: nós também julgamos. Quando pensamos que a  composição melodramática clássica se baseia em um conflito entre duas partes e uma terceira observando, Rashomon multiplica esses pontos de vista: há a história vista pelo lenhador (um narrador não-confiável, como se percebe ao longo da narrativa), pelo camponês (que julga a história) e o padre (que sofre com a história, contribuindo para o clima de “esquecidos por Deus” dos personagens pouco virtuosos). Mas há mais uma figura que é convidada a adentrar o filme: o espectador.

Ainda que filme um julgamento se desenrolando, Kurosawa nunca filma a figura de um juiz; pelo contrário, Kazuo Miyagawa filma seus atores de frente, falando para a câmera. O mesmo conceito se repete nos close-ups, que nos colocam de maneira subjetiva dentro da ação — ou seja, encaramos e somos encarados por aquelas figuras. Ajuda que Rashomon é imediatamente imersivo desde o seu início; Kurosawa sempre valoriza na sua encenação ambientes e silêncios. A chuva que isola os personagens da narrativa-moldura, os longos silêncios e a forma bastante livre de montar a caminhada do lenhador pela floresta ou a perseguição que o bandido perpetra atrás da mulher e do samurai. Não apenas aquela história nos é narrada a partir de fatos concretos, textuais, mas também sensoriais; desde o início, nós estamos vivendo Rashomon, abençoados, porém amaldiçoados, que sempre estaremos com um ponto de vista diferente — mas nunca com o correto.

Kurosawa é sofisticado ao despir a narrativa de maiores afetações, fincado na impossibilidade de revelar o que aconteceu de fato pois sempre partiria de uma perspectiva de alguém e com isso cria um filme contemporâneo antes da época, pois sua narrativa até simples (uma história testemunhada por vários se chocando) vira uma espécie de palco ou laboratório no qual o diretor monta vários filmes sobre o mesmo conflito, sempre trazendo uma nova abordagem.

Ao seu final, ao extirpar de vez a certeza da confiança em apenas uma história, Kurosawa também joga de maneira lúdica que um gesto pode bastar para configurar uma nova verdade. É um dispositivo narrativo com que o filme já brincava antes, trocando mensagens, valores e caráter de personagens a cada história que era trocada sempre há a vítima, o agressor e o traidor, dependendo para onde você olha. O final nos comunica que, nessa obra, dependeremos da nossa fé nas imagens, nas imagens que nos parecem convincentes apenas para ter a impressão de que essa retórica pode ser desmontada. O nosso próprio subjetivismo impede a completa compreensão factual, e é explorando isso que o filme conquista seu lugar de direito no panteão dos filmes mais revolucionários.

Não à toa, Rashomon é considerado amplamente como o filme que colocou o Japão no mapa cinematográfico mundial, ganhando um Leão de Ouro em Veneza e um Oscar honorário antes de haver um prêmio para filme estrangeiro. Vendo, fica fácil compreender o impacto dessa história que revogava que o cinema, como a sociedade, dificilmente seria o mesmo frente às circunstâncias. Estávamos em um campo para quebrar moldes e experimentar, já que, em uma história infundida pelo modernismo e decepcionada com a narrativa monolítica, cabe a nós completar a história, não a um narrador invisível e autoritário. Justamente por isso, Rashomon continua com sua força intocada. Pois Rashomon não é apenas um filme; é potencialmente vários deles.

Texto integrante do especial Baú dos Clássicos

Comentários (3)

Bernardo D.I. Brum | sexta-feira, 18 de Setembro de 2020 - 18:42

Curiosidade: minha crítica número 300!

André Araujo | domingo, 20 de Setembro de 2020 - 22:28

Aquele frame da dama no meio do bosque com as flores brancas ao redor é dos mais belos que já vi. Ótimo texto Brum!

Gabriel Antonio | terça-feira, 22 de Setembro de 2020 - 13:29

Muito bom! Assisti a esse filme há muitos anos, e me lembro que não havia entendido algo do final, não lembro exatamente o que era. Fiquei com vontade de revê-lo.

Mas, enfim, excelente crítica e parabéns pelos 300 textos.

A propósito, eu recomendo não só o manga mas também o filme do Gen Pés Descalços.

Faça login para comentar.