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Rastros de Ódio

(Searchers, The, 1956)
8,3
Média
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A Odisséia no Oeste.

10,0

Há quem diga que todas as histórias do mundo remontam de Homero, autor cujos relatos são considerados o berço da literatura universal. Explica-se: grande parte das histórias viriam da Ilíada, com uma batalha entre um ou mais grupos (ou indivíduos), uma guerra a ser travada e inúmeras opções de estratégia para decidir o confronto; enquanto que o restante das histórias teriam alguma relação com a Odisséia, porque narram um percurso longo, um trajeto com destino, uma viagem a ser percorrida, em busca de outra pessoa, de um lugar ou uma idéia, etc. Uma jornada física e/ou interior, que bem pode ser o combate desigual do homem contra os deuses (como Fritz Lang definiria a Odisséia em O Desprezo [Le Mepris, 1963]), ou contra si mesmo. Dito isso, podemos afirmar que Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), um dos principais, senão o melhor filme de John Ford, é a representação por excelência do conceito da odisséia no cinema americano.

Rastros de Ódio inicia com uma porta que se abre e termina com uma porta que se fecha; começa e se encerra com o retorno de Ethan Edwards (personagem de John Wayne), numa narrativa circular, em que o indivíduo passa por uma viagem pessoal e volta ao ponto de origem – mas volta diferente: evoluído, transformado, marcado pelo acúmulo de experiências e dramas pessoais. Ethan volta da guerra civil americana pensando em encontrar a paz no seio do que lhe restou de família, mas é como se trouxesse a tragédia consigo, como se a fatalidade o perseguisse. À sua chegada, a porta se abre para a paisagem árida que se torna cada vez mais ampla, e vislumbramos o interior da casa, que representa o lar do qual Ethan nunca poderá fazer parte, e a mulher que avança até a varanda da casa, de encontro ao personagem que se aproxima a cavalo.

É sintomático que o protagonista seja representado pelo mais típico herói americano das telas, mas é justamente em Rastros de Ódio que se torna evidente o quanto Wayne está longe de funcionar como uma figura heróica convencional, com seus modos duros e solitários de um homem errante e sem lar. Ele circula entorno da família, reencontra os parentes mais velhos, conhece os mais novos. É flagrante também uma certa tensão sexual sugerida pelos olhares e pelas frases subentendidas, que invocam uma relação mal resolvida entre Wayne (cujo arquétipo habitual em sua filmografia era pouco confortável perto de mulheres) e a cunhada. E se geralmente John Ford nos conquista pelas suas imagens e o talento de contador de histórias, o cineasta nos impressiona também pelo não-dito e por aquilo que não mostra, como Ethan saindo do interior da casa arrasada pelo massacre dos apaches. Não vemos o que Wayne viu lá dentro, mas nem por isso deixamos de imaginar e compreender a exata dimensão do horror que o personagem testemunha, a ponto de não hesitar em bater no sobrinho enlouquecido (Jeffrey Hunter) para impedi-lo de compartilhar da visão das mais trágicas imagens que  Ethan terá que carregar na lembrança enquanto viver. Poucas vezes o extra-campo e o fora de plano fizeram o sentido e mostraram sua força com tanta intensidade quanto nessa passagem.

É o que desencadeia a epopéia de Ethan Edwards, a odisséia no oeste. O herói e o sobrinho mestiço passam anos no encalço dos índios que raptaram a sobrinha (Natalie Wood), cruzam o deserto escaldante ou a neve persistente como se o personagem de Wayne finalmente estivesse em casa, na medida exata de seu próprio mundo. Um cenário de barbárie habitado por integrantes de raças e origens distintas (norte-americanos, mexicanos, pele-vermelhas), sem que nenhum obstáculo faça o protagonista querer desistir de encontrar a menina. E o objetivo se torna mais ambíguo e o seu comportamento mais dilacerante aos olhos da platéia a partir do momento em que compreendemos que seu desejo pode ser não apenas o de recuperar a sobrinha como o de destruí-la por sabê-la contaminada pelo contato com os hábitos indígenas. Rastros de Ódio é um dos maiores tratados sobre um dos aspectos mais discutíveis da formação norte-americana, o racismo, observado no filme de Ford como a verdadeira tragédia do país, causa e efeito de quase todas as guerras e conflitos entre etnias e costumes diferentes, que resultam na busca pelo sangue, na intolerância, no ódio. E que no caso de Ethan Edwards se evidencia ainda mais pelos traumas da Guerra de Sucessão, por carregar no rosto os sofrimentos da derrota do sul em um limbo pós-guerra civil.

Costuma-se apontar, além do mais, que muito dos modos intratáveis do protagonista de Rastros de Ódio eram semelhantes aos do próprio John Ford, que em toda vida mascarava sua sensibilidade com uma certa rigidez e dureza (o que é explicitado no documentário realizado por Peter Bogdanovich, Directed by John Ford [idem, 1971]). Wayne tem sua atuação mais perfeita no papel, amadurecendo o talento revelado pelas mãos do próprio Ford duas décadas antes em No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), no que é plenamente auxiliado pela presença de Jeffrey Hunter (o diretor Howard Hawks dizia que Wayne sempre tinha melhores performances ao lado de um co-protagonista, que normalmente serviria de contraste para que a sua expressividade e maneira complexa com que se apresentava se tornassem mais acentuadas). A relação com o sobrinho é catalisadora de muito do ódio de Ethan, enquanto impõe temor e respeito sobre o mais jovem, e gera também um pouco de comicidade, sobretudo nas ocasiões em que o mais velho troça da inexperiência do rapaz, o que por um tempo suaviza a carga dramática de Rastros de Ódio.

Ford era tão hábil contador de histórias que pouca gente lembra de reverenciá-lo como o grande esteta que foi. Rastros de Ódio é igualmente memorável pelo seu excepcional senso de cores, posicionamento de ângulos de câmera com a precisão de quem mais preza pela justeza do que pela beleza, e a fotografia de Winton C. Hoch que tira extraordinário proveito das locações no Monument Valley, uma região desolada e montanhosa que era o cenário favorito do diretor. Mas nada se justificaria se não fosse a densidade com que a figura de Ethan Edwards é construída. Ao final de sua odisséia, o espectador e o próprio personagem estão com a consciência completa do que ele representa, do que foi a sua luta interna até ali, o que beirou a auto-destruição. No seu documentário Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano (A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies, 1995), Martin Scorsese chama a atenção para uma cena logo no começo de Rastros de Ódio em que Ethan viola o túmulo de um comanche e atira nos olhos do cadáver, sabendo que pela tradição indígena um pele-vermelha se não tem mais olhos, não pode entrar na terra dos espíritos, tendo que vagar para sempre entre os ventos. Scorsese completa dizendo que, no final, o próprio Ethan está amaldiçoado, do mesmo modo que amaldiçoou o comanche morto, com o personagem de Wayne na condição de condenado a vagar entre os ventos, agora sem qualquer rumo.

Essa condição é expressa de forma brutal e simbólica pelo plano que encerra o filme. A porta que se fecha deixando Wayne do lado de fora, como que já não pertencendo mais àquele mundo, num espaço ensolarado no qual o espaço ao redor dele se afunda na mais densa escuridão que é, a um só tempo, seu abismo e seu retrato. É o enquadramento que aprisiona como moldura; sua solidão, sua rejeição a tudo e a todos, desde o início do filme, pareciam sugerir esse isolamento. A sua condição de outsider no oeste que recebe a chegada da civilização seria catapultada de vez no último faroeste que Ford e Wayne realizaram juntos, O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), o testamento do gênero, no qual o grande cowboy é simbólica e literalmente velado. Um gesto natural que, junto da cena final de Rastros de Ódio, encerra toda a tradição que é tanto a de um gênero quanto a do próprio cinema.

Comentários (2)

Daniel Borges | terça-feira, 10 de Abril de 2012 - 14:26

Análise arrasadora.

Rafael Alves | domingo, 09 de Junho de 2013 - 12:22

Western mais sombrio e ao mesmo tempo mais poético que se tem notícias. Crítica perfeita.

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