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Críticas

Cineplayers

Uma vida de extremos, da maior personalidade do rock no Brasil.

7,0

John Lennon, algum tempo depois do fim dos Beatles, declararia em uma entrevista para a televisão que havia decidido seguir pelo caminho da música após ir ver um filme de Elvis Presley no cinema. “That’s a good job”, concluía, a cada vez que o pioneiro do rock ‘n’ roll aparecia na tela, incitando gritaria e histeria inéditas em uma sala de projeção. Na mesma época, no Brasil, algo semelhante aconteceu. Raul Santos Seixas, baiano de classe média, nos fins da década de 50, chegava à matine por volta das 14h para assistir ao filme Balada Sangrenta (King Creole, 1958), e permanecia até a última sessão, por volta das 22h. Isso por quanto o filme do rei do rock estivesse em cartaz. O adolescente Raul andava de gola erguida, se auto declarava o James Dean de Salvador.

O cinema teve um papel decisivo na popularização do rock desde o seu surgimento, consolidando seus ícones, o conceito de rebeldia juvenil, disseminando uma nova onda cultural. Nos anos 50 e 60, muitos anos antes da MTV e da era do videoclipe, é realmente incontável o imenso número de filmes estrelados por cantores e bandas do então novo estilo nascente, ou que orbitavam pelo novo gênero – de Ao Balanço das Horas (Rock Around the Clock, 1956) a Sementes da Violência (Blackboard Jungle, 1955).

E uma infinidade de artistas teve sua formação intensamente influenciada por essas produções. Se tornaram músicos, roqueiros, por meio do cinema. Raul Seixas é um deles. Logo no início do documentário Raul Seixas - O Início, o Fim e o Meio (idem, 2012), imagens de arquivo em que o próprio fala sobre a sua paixão pela arte cinematográfica, o impacto recebido pelos filmes, e como pretendia (em sua sempre presente ironia) acabar sua carreira em Hollywood.

A intersecção entre cinema e cultura do rock foi escolhida para dar o pontapé inicial neste longa. A abertura do filme já apresenta uma série de imagens de Sem Destino (Easy Rider, 1969) mescladas com tomadas de um cover de Raul Seixas guiando uma motocicleta Chopper pelas estradas do Brasil – há um teor emblemático nisso. Planos que enfatizam detalhes da moto em alta velocidade, símbolo da liberdade e da contracultura – é possível associar com a muito parecida sequência inicial dos créditos de La Bamba (idem, 1987), cinebiografia do pioneiro do rock Ritchie Valens, e até mesmo ao culto ensandecido de Scorpio Rising (idem, 1964), do obscuro e diabólico diretor Kenneth Anger. De um modo geral, é uma obra que visa situar Raul como um legítimo representante da corrente contra-cultural do século 20 no país. Tanto no que compete à parte musical, mas também devido ao seu envolvimento com o misticismo, satanismo e muitas drogas pesadas. Com esse intuito, parte de uma série extensa de entrevistas com pessoas que conviveram diretamente com ele, desde o início, como na banda "Raulzito e os Panteras", até o melancólico final de sua carreira.

O perfil traçado do músico é estabelecido por diversos depoimentos de familiares, amigos, uma surpreendente diversidade de ex-exposas e companheiras, e dos parceiros de composição, como Paulo Coelho e Claudio Roberto. Atualmente, o primeiro vive em uma mansão de alto luxo em Genebra. O segundo, coautor do clássico “Maluco Beleza”, mora em uma cabana, isolado no campo, vivendo, em suas palavras, apenas de comida e sonhos. Mas, de todas as participações no filme, sem dúvida a de maior relevância, com as revelações mais pertinentes para compreender quem foi, afinal, Raul Seixas, é a do famoso escritor Paulo Coelho. - O maior parceiro de Raul? “Foi o próprio Raul”, responde o autor de O Almquimista: sua dualidade, o confronto de suas personalidades, Raul consigo mesmo.

Fica evidente que tratava-se de uma personalidade complexa. Teria sido apresentado às drogas aos 27 anos pelo seu principal parceiro de composição, e experimentado de tudo – não gostava de maconha, mas acabou alcóolatra e viciado em cocaína (a droga do mal, segundo Coelho). Das muitas mulheres que teve (e realmente foram em quantidade numerosa), é notável o papel dos entorpecentes nas relações – uma das esposas chegou a dizer que pensou em vender tudo o que tinha na vida só para cheirar pó com Raul. Marcelo Nova, seu último parceiro musical, acabou por encontrar, nos anos 80, um ídolo debilitado, vivendo em condições absolutamente miseráveis, beirando a mendicância. A parceria chega a ser questionada – teria Marcelo Nova se aproveitado de sua popularidade para se promover? Ou uma alma bondosa e samaritana, que acompanhou a estrela do rock em seu momento derradeiro, já hostilizado pelas novas gerações? Nem uma coisa nem outra, afirma o ex-líder da banda Camisa de Vênus. 

Mas, ao mesmo tempo que levava uma vida de autodestruição pelo consumo excessivo de alucinógenos, havia a dualidade, o autor de letras poéticas e geniais. Pedro Bial e Caetano Veloso destacam esse aspecto, citando trechos de suas composições, como de um de seus primeiros sucessos, “Ouro de Tolo”. Bial chega a apontar que, com essa canção, Raul teria sido uma afronta maior à ditadura do que o próprio Chico Buarque. No entanto, ele mesmo se definia como sendo do estilo Raul Seixismo: não era militante de nenhuma causa ou grupo, foi um trovador solitário. Não era da Jovem Guarda, nem dos Tropicalistas, nem dos Novos Baianos, nem hippie, nem comunista, nem de esquerda, nem do cânone da MPB – há uma imagem de arquivo em que ele satiriza o violão e os acordes de “Garota de Ipanema”.

É certo que o público cantava de punho erguido e fechado “Sociedade Alternativa. "Mas quem era da chamada sociedade alternativa? Talvez só eu, Raul, e nossas esposas”, reponde Paulo Coelho. Registros raros de película Super 8 de um suposto filme chamado Contatos Imediatos do Quarto Graal, mostram claramente Raul Seixas e Paulo Coelho em um chocante ritual satanista, fazendo holocausto, sacrificando animais, degolando um cabrito, entre outras imagens fortes. Ambos fizeram parte de um grupo no Brasil, existente até hoje, que acredita ser Lúcifer um anjo da sabedoria, que traz o conhecimento aos homens. O clã afirma que Coelho ainda é um associado, e o escritor rebate: “será que não há dispensa por abandono? Puxa...”. Quando na canção o trecho diz “faça o que tu queres, pois é tudo da lei”, trata-se de uma tradução da máxima do ocultista Aleister Crowley, o mandamento “Do What Thou Wilt”. 

O documentário não é condescendente com Raul. Fica clara a intenção dos realizadores Walter Carvalho e Evaldo Mocarzel em traçar um panorama de uma personalidade de multiplas facetas, através de diversos pontos de vista, onde cada um conta a versão do Raul que conheceu – emulando a lógica de uma espécie de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) documental. A fotografia não é límpida, remete a uma textura retrô de filme 16mm, e a iluminação de Lula Carvalho é irregular, repleta de luz e sombras, projetando contrastes nas feições.

Jamais é dito em momento algum que Raul Seixas foi o maior nome do rock no Brasil. Mas certamente foi. O que principalmente o documentário revela é o fato de que, mais que um artista, um cantor ou compositor, foi uma personalidade que realmente embarcou na cultura do sexo, das drogas e do rock ‘n’ roll, e aplicou em suas experiências particulares esse bordão ao extremo. Ninguém teve uma vida com os preceitos da contracultura levada a cabo, com tanto rigor e fé quanto ele. Sua vida lhe custou a própria. Tal como foi o cinema, que o possuiu, nada mais justo que dele se fizesse cinema um dia. E o epílogo escolhido para a abertura do documentário não poderia ter sido outro:

Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca
de uma dose violenta de qualquer coisa,
“hipsters” com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato
celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite.”

Extraído de “O Uivo”, poema de beatnik Allen Ginsberg

Comentários (8)

Angelão | terça-feira, 08 de Maio de 2012 - 12:15

Em termos de incorporação dos ideais talvez Raul seja o maior rockeiro brasileiro, mas em termos melódicos e poéticos, parece-me que Cazuza foi além. De qualquer modo, Raul foi um grande gênio que merecia um maior reconhecimento pela mídia em geral. Acredito que este documentário ajudará neste processo. Excelente crítica, uma das melhores do site, principalmente pela citação ao final. Mas o melhor da página, sem dúvida, é o comentário de Edward: "o lixo do Paulo Coelho, que viveu tudo aquilo e escolheu ganhar dinheiro, escrevendo um monte de livros da merda de auto ajuda e passear na Ilha de Caras"!

Daniel Mendes | terça-feira, 08 de Maio de 2012 - 20:38

Gosto de outras bandas de rock (Legião, Mamonas, Cazuza, Engenheiros, etc) e não tenho conhecimento para dizer quem foi o maior roqueiro do país, mas meu favorito é sem dúvidas o GENIAL RAUL SEIXAS!!! Deveriamos estudar na escola o Raúl Seixismo.

Karlos Fragoso | quinta-feira, 13 de Março de 2014 - 09:19

Filmaço, muito bem filmado, com cenas que nunca antes tinha visto (raridades). Sou um grande admirador de Raul Seixas por isso gostei tanto. Ele era o Cara!! Toca Raulll

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