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Rede de Ódio

(Sala Samobójców. Hejter, 2020)
7,1
Média
53 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Apelo em forma de filme

6,5

As eleições ao redor do mundo nos últimos cinco anos viram uma influência sem igual das mídias sociais na construção de suas campanhas. O impacto foi sumariamente negativo: afinal de contas, popularizou-se o uso das fake news enquanto estratégia de difamação do opositor, com o inimigo sendo retratado como um monstro envolvido em toda a sorte de perversão, alcançando milhares em minutos. O resultado é de consenso quase unânime: figuras da internet como o hater, o usuário que posta indiscriminadamente críticas destrutivas e discursos de ódio e o troll, que procura inflamar e perturbar discussões, foram instrumentalizados com interesses políticos. E a estreia da Netflix Rede de Ódio toca justamente nesse nevrálgico ponto atual.

O novo filme do polonês Jan Komasa, após ser indicado ao Oscar de Filme de Estrangeiro por Corpus Christi, retrata a vida de Tomasz Gienza, ao que parece, um indivíduo perverso por natureza: nos primeiros minutos, vemos não só sua expulsão da faculdade de Direito por plágio, como também é capaz de espionar a rica família Krasucki, que pagava seu curso, mas debocha dele pela costas. Como vingança, arruma um emprego em uma predatória agência de relações públicas dedicada, em última análise, a destruir personas públicas. Uma troll farm ou fazenda de trolls, popularmente conhecido no Brasil como Gabinete do Ódio.

Com sua falta de escrúpulos, a ascensão de Tomasz é rápida: após destruir uma webcelebridade do Instagram, seu novo encargo vira ser minar a campanha de Pawel Rudnicki, um candidato à prefeito de plataforma progressista apoiado pela família Krasucki. Após ser excluído da faculdade e logo em seguida do contato com seus benfeitores, Tomasz percorre o caminho das pedras em progredir tanto no mundo da difamação virtual quanto tentar reerguer-se no mais politicamente correto ambiente social.

Rede de Ódio é um filme fechado na sua exploração da prática anti-virtuosa. Tal qual o jornalista de A Montanha dos Sete Abutres, o assessor de imprensa de A Embriaguez do Sucesso e o político de House of Cards, o filme retrata um mundo onde tal tipo de conduta não apenas não é condenada - como pelo contrário, também é em algum nível encorajado e recompensado. Ainda no terreno das comparações, é como se A Rede Social - onde Fincher e Eisenberg retrataram o empreendedor como um manipulador nato - fosse batido no liquidificador com Psicopata Americano - onde Mary Harron e Christian Bale demonstravam de maneira satírica e grotesca o lado sombrio do mundo corporativo.

Em comum, esse filmes (e séries) narram a vida de indivíduos que anseiam por poder sem remorso. E como em seus congêneres, Rede de Ódio é movido pelo ego: ao tentar radicalizar um xenófobo, Tomasz declara em alto e bom tom para ele o desgosto que tem por ser um perdedor; que mais do que por seus talentos, sua ambição o faz ter direito de ter sucesso e laços sociais. Ele que deveria ter empoderamento. Retratado como um indivíduo solitário e desconectado todo o filme, o único momento que sua casca rompe é justamente num discurso mais explícito impossível; que tipo de indivíduo estamos criando?

O filme passa longe de ser perfeito - se prolonga bastante em suas andanças em círculo e suas perversidades só passam a ser praticadas após considerável preparação de terreno. No meio do caminho entre o estudo de personagem e o conto moral, o filme nunca arte o passo de verdade. Ao contrário de parceiros de gênero, sua construção de personagem não transmite que ele seja essencialmente vazio em sua ganância, mas ressentido. De certa forma, seus benfeitores atuam tanto como antagonistas quanto o candidato para quem trabalha, ou para sua chefe - sua inocência parece uma máscara de hipocrisia, já que são humanistas publicamente, enquanto cruéis de maneira reservada. Do mesmo modo, seu interesse romântico - ou melhor, garota por quem é obcecado -, demonstra-se dúbia e confusa em suas atitudes. Mas claro, como lembra o filme em seu miolo mais politizado, nada que vá comparar as atrocidades que veremos a seguir. Mesmo que não haja santos aqui, Tomasz supera todos eles em sua ausência de norte moral.

Essa é a segunda vez que Komasa toca no assunto - da primeira vez, O Quarto do Suicídio alertava para os perigos do bullying virtual ao mostrar como eram os efeitos psicológicos de tal prática em quem é perseguido - no caso, um garoto que tem sua homossexualidade ridicularizada. Agora, o roteiro de Mateusz Pacewicz, que assume o primeiro longa como base, explora o lado inverso: o do perseguidor.

E é aqui que mora o ouro do filme, em meio à lentidão de sua narrativa: Tomasz é desprovido de ideologia, como mostra a cena-sumário em que utiliza diferentes computadores e diferentes perfis criados a toque de caixa na Índia onde organiza um protesto a favor do prefeito liberal e uma marcha radical contra. Enquanto escreve “avante democracia” em um perfil, escreve “viva o nacionalismo” em outro. Reproduz os clichês de outro. As ideologias surgem como ferramenta para o protagonista, já que em determinado momento a criatura “pula” de suas mãos e o conflito virtual que organizou salta para o âmbito real, e a violência que paira no ar é um construto para quem quer o poder. Um não-ideólogo ainda pode se utilizar da falência das ideologias, afinal de contas.

De certa forma, o filme encontra paralelos na realidade. Pouco após a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, a Netflix divulgou o documentário Get Me Roger Stone, sobre o conhecido lobista republicano que já havia atuado nas campanhas de Nixon e Reagan e tinha sido peça considerável para eleger o ex-apresentador d’O Aprendiz. Roger Stone dizia se deliciar com o ódio dos outros, pois categoriza o sentimento como um “motivador maior que o amor” e que sabia que ele poderia ser detestável, mas nunca chato. Afinal de contas, “política é showbiz para gente feia”, como definia. Um personagem que não se incomoda de usar a retórica para alcançar o efeito desejado, o que dissipa qualquer sensação de fantasia ao ver Rede de Ódio e aflição despertada cada vez que um factóide sobre “islamização” ou “dominação cultural LGBT” é viralizada.

E não é só isso. Três semanas após as filmagens serem concluídas, Paweł Adamowicz, prefeito de Gdańsk e apoiador de causas liberais e progressistas como direitos LGBT e imigração, frequente alvo de ódio online, foi abordado em pleno palco por Stefan Wilmont e esfaqueado no coração, falecendo dos ferimentos no dia seguinte. A tour de force do filme, em que a cereja do bolo do plano de Tomasz é encorajar um solitário com tendências fascistas a cometer um ato terrorista, ganha contornos ainda mais sombrios.

Por isso que, ainda que imperfeito, Rede de Ódio surge como um filme necessário, dada a sua precisão, através de sua cinematografia desbotada e dessaturada até o seu esbranquiçado não ser leitoso, mas doentio, da ameaça que as instituições tradicionais padecem do mau uso da tecnologia; invadidos por parasitas privados que terceirizam as responsabilidades públicas (como as companhais de relações públicas agindo não para construir uma imagem, mas para destruir outras), é nítido o endurecimento dos governos. Ao contrário do seriado Black Mirror, como vinham comparando, não há uma catarse, mas uma “anticatarse”, onde o perverso pratica seus atos não apenas sem castigo - mas sem a mínima investigação dos seus atos; a internet continua um terreno virgem para semear atos extremos e seus criminosos agem sem a menor culpa ou medo de serem pegos.

Dado o final, tão chocante quanto abrupto, é de se pensar que Komasa de certa forma clama por uma maior atitude dos lugares onde o ódio é praticado - uma demanda social crescente que os beneficiados categorizam como tentativa de censura. Mas frente à retórica emocional exposta do filme, fica difícil passar indiferente a esse contexto onde a falta de ação em nome de isenção cria um clima de terra de ninguém, onde reinam apenas os sentimentos baixos e o sentimento de integração social parece se desfazer e se tornar secundário ao sonho de empoderamento que figuras frustradas acham ter direito e não recebem.

Talvez por isso, muitas críticas categorizam Rede de Ódio como um sutil flerte com o terror e com o arquétipo do vampirismo - opinião suportada pela atuação de Maciej Musiałowski, macilento e obsessivo em sua cruzada solitária e um perfeito camaleão colorido perto de outros. Mas vale notar que é um vampirismo que não existe à parte de nós, mas é parasitário, andando entre nós, impune. O roteiro de Komasa é empático em sua primeira hora, mas depois não resta mais nada no protagonista senão um cinismo destrutivo - nem sentimentos podem ficar no caminho de seu plano de respeitabilidade, como demonstra um particular silêncio em seu clímax. E a seca nota final mostra que apesar das ocasionais explosões de violento desespero, o conflito retratado aqui está infelizmente longe de terminar.

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