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Críticas

Cineplayers

O cinema sem respostas.

7,0

Falando de algo completamente pessoal, admito que costumo admirar certas obras cinematográficas que consigam sair ilesas de propostas fadadas ao fracasso. Explicando melhor, quando algum filme tem tudo para ir para um caminho equivocado, segue uma lógica que em algum momento deverá levar ele para o fundo de um poço e o diretor consegue se libertar desse percurso e entregar um projeto digno, eu tenho uma tendência a gostar. Mesmo não sendo um grande filme. Mesmo, eventualmente, não sendo um filme especificamente emocionante. Para todos os efeitos, Reencontrando a Felicidade se encaixa perfeitamente nessa “classe” de relevância.

John Cameron Mitchell adapta para a tela uma peça escrita por David Lindsay-Abaire, que também é roteirista do projeto cinematográfico, sobre a vida de um casal de classe média norte-americano tentando se adaptar a uma nova realidade completamente absurda: a vida sem seu único filho, Danny. Para quem conhece a carreira de Cameron Mitchell, é um projeto completamente diferente – e estranho – em comparação com sua obra pregressa, que inclui o espalhafatoso Hedwig – Rock, Amor e Traição (Hedwig and Angry Inch, 2001) e o manifesto ao amor livre no explícito Shortbus (idem, 2006). Porém, olhando mais atentamente para os três filmes, principalmente para os dois últimos, existe uma idéia que dá o tom das obras: em ambos, os personagens passaram por traumas que modificaram de algum modo suas vidas (Shortbus se passa em uma Nova York de submundo pós 11 de setembro) e precisam encontrar um modo de lidar com essas rupturas na normalidade de suas realidades. Enquanto em Shortbus a aceitação virá sob forma da compreensão dos desejos sexuais e das liberdades que o sexo permite, Rabbit Hole propõe uma imersão circunstancial na dor e no luto, o olhar direto para a perda.

Digo circunstancial, pois o filme não pode ser classificado exatamente como um grande estudo sobre a morte e consequências traumáticas nas vidas de quem permanece vivo, nem especificamente é um filme sobre o que há de mais complexo na idéia do luto e na impotência que isso gera em quem o sente. O ponto é que ele não ser nada disso não implica em nada no êxito do filme, pois o fato de John Cameron Mitchell não ter feito um filme Bergmaniano ou um melodrama de proporções épicas faz de Rabbit Hole algo menor, mas razoavelmente mais sincero. A escolha do projeto pelo diretor recai em um acontecimento da vida pessoal dele, que remete à narrativa do filme. Muito possivelmente por isso, ele teve o cuidado necessário de estabelecer limites pontuais para a aproximação de sua câmera para com os acontecimentos e os personagens. Em Rabbit Hole, o que há de “superficial” existe principalmente porque certas questões precisam ser levantadas, mas não concluídas.

A evolução narrativa do filme ocorre de modo clássico, se revelando quase esquemática, caso se tome como base a sequência dos acontecimentos pura e simplesmente. Porém, é importante perceber que essa linha narrativa respeita o arco dramático de cada um dos dois personagens principais, a mãe interpretada por Nicole Kidman (merecidamente indicada ao Oscar pelo papel) e o pai feito por Aaron Eckhart (também digno de indicação). Enquanto ela segue um caminho de defesa, uma postura um tanto passivo-agressiva, ele parece mais sereno e disposto a seguir em frente. Essa lógica é estabelecida até o momento em que um personagem-chave é inserido no meio dos dois e uma inversão dos papéis se dá, de modo surpreendente e que, de certo modo, nos faz reavaliar a maneira como aqueles personagens estavam sendo interpretados por nós, público, até então. Não significa que Rabbit Hole estabeleça um caminho surpreendente, mas sim que ele não se vale de uma significação única e evidente.

Ao longo do filme, algumas metáforas vão sendo dispostas, em forma de uma imagem que gradativamente vai sendo formada (e que mais a frente representará o significado para o título original do filme) e também de uma figura descrita pela personagem de Dianne Wiest, mãe de Nicole Kidman no filme: apesar de ter sofrido uma perda semelhante à da filha, a mãe costuma ser repreendida por comparar seu filho morto com o neto perdido; no momento em que a personagem de Kidman começa a aceitar melhor as circunstâncias da nova ordem de sua realidade, as duas têm uma conversa catártica no porão da casa, quando a mãe descreve que aquela dor nunca desaparece, mas se transforma em algo diferente. A dor sai de dentro e passa a ser como um tijolo, que você carrega no bolso de um casaco; de vez em quando você esquece e, quando sente um peso, mexe no bolso e sente. Aí pensa: “ah, é isso”. Assim é o luto diante do olhar de John Cameron Mitchell, algo que existirá para sempre, para o qual não haverá uma solução especifíca, uma fórmula mágica, mas que demanda de quem o sofre uma vivência de um dia após o outro, quando algo há de acontecer. Por sorte, não acontece a Rabbit Hole o terror de dar qualquer resposta.

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