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Rei, O

(King, The, 2019)
7,3
Média
71 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A tragédia de Hal

8,5

A Netflix se parece cada vez mais com a indústria cinematográfica tradicional. Recentemente, em texto sobre Sombra Lunar, critiquei especificamente a reprodução de um vício ruim de Hollywood: a escalação do competente Jim Mickle para dirigir um filme de encomenda e atender a uma demanda, a despeito do potencial do autor de Julho Sangrento de criar algo próprio e de excelência. Eis que esse fim de ano comprova a tese, agora em um viés positivo: de que a gigante do streaming também vem guardando para o fim do ano os seus melhores títulos (consequentemente, aqueles com maiores chances na temporada de premiações). Dias depois do surpreendente Meu Nome é Dolemite, com Eddie Murphy, e a poucas semanas de lançar dois filmes muito cotados na corrida pelo Oscar 2020 O Irlandês, de Martin Scorsese, e História de um Casamento, com Adam Driver e Scarlett Johansson , a Netflix estreia O Rei, longa-metragem que faz jus ao seu material de origem: a obra de William Shakespeare.

Baseado nas peças "Henrique IV - Parte I", "Henrique IV - Parte II" e "Henrique V", O Rei é uma adaptação livre: contém as mudanças necessárias para os três segmentos funcionarem como um só filme de 140 minutos sem sacrificar personagens, sua estrutura narrativa ou seu tom próprio. É por isso que os rumos do icônico Falstaff são alterados e seu desfecho é mais glorioso que na trama do Bardo Inglês, por exemplo. Apesar de todas as reclamações a respeito (é espantoso o desrespeito de parte da crítica, de todo o mundo, à natureza fundamental de uma obra de ficção), essa e outras modificações desse novo filme são inteligentes, pois coerentes com o foco do longa-metragem: todo voltado para a observação psicológica de Hal, o rei Henrique V, retratando a sua trajetória épica como um dos monarcas mais celebrados da Inglaterra em consonância com todo o questionamento moral que ele impõe sobre si mesmo em O Rei, e é William Shakespeare quem critica não só nessas peças, como em basicamente toda a sua dramaturgia.

Tal abordagem transfere essa adaptação de "Henriad", drama histórico repleto de cenas cômicas, para o período seguinte da obra de Shakespeare: das grandes tragédias. Assim, não espere um Sir John tão hilário quanto o de Orson Welles em Falstaff - O Toque da Meia-Noite (1965). O que se vê é um conselheiro sombrio, fanfarrão porque absorto na frustração do que não fora, niilista em relação a si mesmo e indiferente a títulos nobres, somas de dinheiro ou glórias bélicas. Portanto, O Rei comporta um Falstaff (bem interpretado pelo correitirista Joel Edgerton) mais trágico, porém tão interessante quanto em "Henrique IV -  Partes 1 e 2". A imaginação de sua participação na Batalha de Azincourt, episódio crucial da Guerra dos Cem Anos e da peça de que ele não participa ("Henrique V"), proporciona um bonito vislumbre de como o sábio e rebelde cavaleiro bêbado poderia contribuir como conselheiro do rei.

Para a concepção de sua atmosfera carregada, O Rei investe em ambientes internos duros, secos, lúgubres, escurecidos por paredes de pedra sem adornos. A iluminação natural, e precária, é aquela mesma que exige citar o clássico Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick. Os altares não são tão altos  o trono fica à altura da moral daqueles homens que ascendem ao custo de traições e mortes. Enfim, toda a concepção visual do novo filme da Netflix lembra muito a de outra adaptação recente da obra de Shakespeare: Macbeth: Ambição e Guerra (2015), tragédia legítima do Bardo, dirigida por Justin Kurzel — o que explica tamanha semelhança.

O australiano Justin Kurzel é conterrâneo e contemporâneo de David Michôd, diretor e roteirista de O Rei. Os filmes que os revelaram para Hollywood, Os Crimes de Snowtown (2011) e Reino Animal (2010), respectivamente, são dramas criminais que partilham da mesma essência brutal e soturna. Cineastas próximos irmãos de alma, que se inspiram mutuamente. Assim, para mergulhar O Rei na tragédia, Michôd faz como Kurzel fez com Michael Fassbender em Macbeth e também aposta na força dramática e psíquica do protagonista, vivido por Timothée Chalamet. E o jovem e talentoso ator de Me Chame Pelo Seu Nome (2017) destrói! Seu rosto angelical entra em absoluto conflito com seu semblante fechado, sem jamais derrapar na afetação. O roteiro contribui para isso contextualizando sua forte personalidade, enquanto Timothée preenche as lacunas desse texto funcional e enxuto com uma atuação primorosa.

David Michôd tem o mérito de potencializar a expressividade do ator com closes de sua face (ora frontais, ora laterais, sempre sublinhando sua confusão psicológica em um meio tão traiçoeiro e desconhecido) e até mesmo sua compleição física magra, vide a primeira cena de luta de Hal, contra Percy "Hotspur" (Tom Glynn-Carney). A dificuldade do protagonista de se locomover com uma armadura tão pesada e uma espada quase do seu tamanho aumenta a tensão da sequência e será um dado importante para uma definição estratégica adiante, às vésperas da Batalha de Azincourt. E nesse conflito, aliás, o diretor também dá show. Trabalhando desde a sua preparação, em reuniões entre a alta cúpula inglesa, passando pela expectativa por um fator natural que será fundamental para a batalha, atingindo o seu ponto climático, longo, com bons momentos, tão importante na história britânica e para se entender o culto em torno de Henrique V, um dos maiores reis guerreiros da Inglaterra. Como entrega um plano zenital no meio da batalha, David Michôd se inspirou num grande evento recente da televisão para encenar essa sequência: a Batalha dos Bastardos da série Game of Thrones. O que é uma ótima referência, espetacular.

O Rei consegue, assim, adaptar um material delicado com propriedade, até mesmo coragem, haja vista a resistência geral em se encarar uma obra de ficção como tal e uma adaptação como algo independente, que não só pode, como deve fazer as mudanças necessárias para ser suficiente na tela. Do teor satírico do original de Shakespeare, apenas o Delfim do ótimo Robert Pattinson, que interpreta bem a caricatura da pompa francesa, mas soa deslocado do todo. O longa-metragem de David Michôd vai melhor quando alimenta sua aura sombria, carregada. Chafurdando seu personagem caótico em temas como família, poder, traição e autopiedade. Até o fim, quando nos deparamos com o nascimento de um novo Daniel Plainview   implacável, brutal. Assim sacramentando O Rei como um grande drama em três frentes: de guerra, histórico e psicológico.

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