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Críticas

Cineplayers

Huston e Bogart juntos no filme que fez muito pelo noir.

8,5

Hoje, John Huston e Humphrey Bogart são dois dos maiores nomes da história do cinema norte-americano. Enquanto o primeiro é o responsável por grandes clássicos que fascinam até hoje, o segundo é nada menos que um verdadeiro ícone e um dos rostos mais lembrados quando o assunto é a chamada Época de Ouro de Hollywood. Houve um período, porém, na qual ambos eram apenas mais dois nomes tentando dar certo na indústria. Huston, um roteirista de certo respeito, almejando um dia comandar uma produção. Bogart, um ator de segundo escalão, preso a papéis de coadjuvante. O que faltava para eles alcançarem o estrelato e uma posição de respeito não era talento: isso, como viriam a provar depois, possuíam de sobra. Faltava apenas o momento da virada, o grande sucesso que caísse nas graças do público e tirasse a dupla do segundo plano para jogar, de uma vez por todas, no primeiro time.

Essa virada veio em 1941, com Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, 1941). Considerado por muitos como o filme que definiu as regras do noir, esta adaptação do livro de Dashiell Hammett (que já havia sido levada duas vezes às telas de cinemas, em versões que Huston considerava fraquíssimas) recebeu três indicações ao Oscar, foi bem recebida pelas plateias e é, ainda hoje, vista como uma das melhores obras do gênero – ou subgênero. Relíquia Macabra traz um exemplo clássico do MacGuffin de Hitchcock, aquele elemento do roteiro cujo único objetivo é fazer a trama andar – no caso, trata-se uma estatueta de um falcão, supostamente roubada por piratas da mão de cavaleiros templários. Na realidade, a constituição do objeto em si não tem a menor importância (ele aparece apenas na última cena): o que interessa aqui é tudo o que gira em torno dele e como ele leva os personagens a cruzarem os caminhos uns dos outros.

Aliás, os personagens talvez sejam a primeira grande novidade presente no filme para o público da época. Ao contrário do que as plateias estavam acostumadas, em Relíquia Macabra não existe necessariamente a distinção entre o mocinho e o vilão. Ou melhor: aqui o mocinho não é necessariamente bom, ao mesmo tempo em que o vilão não é necessariamente mau. Huston (também roteirista) ousou construir personagens com moral duvidosa, cuja verdadeira natureza jamais fica verdadeiramente clara. Afinal, o detetive Sam Spade, grande herói da trama, não parece ter muitos escrúpulos, uma vez que não hesita em ter um caso com a esposa de seu sócio – inclusive a deixando de lado após a morte deste. Da mesma forma, Brigid O’Shaughnessy não é mocinha tipicamente vista nos filmes daquele tempo: ela mente ou engana o tempo todo, se isso for preciso para atingir seus objetivos. E, claro, o mesmo vale para Kasper Gutman (em um excelente trabalho de Sidney Greenstreet), que, mesmo sendo o grande antagonista da trama, demonstra ser um homem culto e educado, inclusive a ponto de admirar o seu adversário.

Assim, ao invés de apostar no preto e branco e na rotulação de seus personagens em estereótipos, Huston prefere os tons de cinza na forma de apresentá-los, tornando-os mais ricos e interessantes. Na verdade, esse caminho escolhido pelo diretor também pode ser estendido aos aspectos técnicos da produção, uma vez que Huston filma diversas cenas em ângulos mais baixos, de modo a realçar o clima ameaçador e dúbio daquelas pessoas e daquele mundo. Com isso, o espectador nunca sabe se o que está sendo dito é realmente verdade, pois cada personagem parece ter o seu propósito individual, assim como também demonstra fazer qualquer coisa para alcançá-lo. Huston ainda merece crédito pela ousadia de apostar em longas tomadas – algo raro para a época – e por construir cenas cujo ritmo é impecável: os vinte minutos finais, quando todos estão na sala e tudo converge para a solução da trama, é conduzido de forma irrepreensível, tanto em termos de movimento e posicionamento de câmera quanto de diálogo e atuações.

Diálogos que, por sinal, são parte fundamental de Relíquia Macabra. Na verdade, o filme é construído quase totalmente em torno deles. A ação é quase 100% verbal, sem espaço para qualquer reflexão ou longos momentos de silêncio entre os personagens. O que o espectador sabe sobre a trama não é o que é mostrado, mas o que é dito. A troca de palavras, aliás, é extremamente veloz e exige total atenção para que não seja perdido qualquer detalhe. Diante disso, o que garante o bom resultado do filme é a qualidade destes diálogos, todos muito bem escritos e revelando apenas o necessário para manter a dúvida sobre os acontecimentos da trama – supostamente, Huston adaptou o texto original de Dashiell Hammett quase de forma literal para esta versão de Relíquia Macabra. Sam Spade, por exemplo, sempre tem uma resposta espirituosa na ponta da língua, seja para as autoridades, para a femme fatale ou para os próprios criminosos, em uma postura que também se tornou característica dos detetives noir.

Relíquia Macabra trouxe conceitos novos para o cinema de sua época, mas não se trata de um filme preso ao tempo. Pelo contrário, a obra segue ainda hoje um grande exemplo de eficiência narrativa, com Huston habilmente combinando os pequenos elementos, incluindo Bogart no tipo de papel que o marcaria, para criar uma atmosfera e contar a sua história. Ao final, fica a impressão de que a frase mais icônica do filme poderia ser alterada: a relíquia não é o tipo de coisa de que são feitos os sonhos. É do que, ainda hoje, é feito o próprio cinema.

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