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Críticas

Cineplayers

No fluxo das contradições.

5,0
No mesmo ano, dois filmes, lançados com um mês de diferença, abordam as tentativas de vencer o vício em drogas a partir de núcleos familiares. Esse O Retorno de Ben se sobressai a Querido Menino pela sua abordagem mais seca, de cortes duros e disposição menos melodramática que o longa de Felix Von Groningen, ainda que não seja áspero por natureza. A emoção aparece, mas é como se aqueles espaços e personagens já fossem íntimos da dor, e agora só seu reflexo ocupasse lugar naquele grupo de pessoas. Com insuspeitas inserções bem humoradas dentro de sua narrativa, esse aspecto dá unidade ao material e tira o excesso de peso a uma narrativa que naturalmente não é leve. Aos poucos, essas qualidades vão se mostrando insuficientes para a manutenção do roteiro, e as discrepâncias narrativas começam a incomodar em certa altura. 

Essa crueza positiva situa o filme em rápidas 24 horas de duração de sua trama, que acompanha a véspera de Natal de uma família em suspenso da sua totalidade. Quando Ben volta nessa data específica, todos se desestabilizam pois o rapaz saiu da clínica de recuperação para adictos onde estava internado e encontra seus familiares reticentes às suas afirmativas de cura. Mesmo sua amorosa mãe oferece resistência a seus apelos quanto a cura, e sua presença então passa a ser tolerada apenas por se tratar da data peculiar. Mas esse dia se mostrará longo do ponto de vista da quantidade de entreveros que a família precisará enfrentar devido a presença de seu membro despedaçado emocionalmente, cujo passado se mantém intacto ao enfrentar desavenças antigas e reais relacionadas às atividades de Ben.

O roteirista e diretor Peter Hedges trabalha a urgência desse curto espaço de tempo de maneira eficiente e até pouco didática; o filme esclarece pouco quanto ao rastro de destruição que Ben deixou em sua comunidade anos atrás, mas o suficiente para percebermos seu grau de alcance. A câmera do filme carrega uma tensão quanto aos eventos mostrados até de uma forma que não é necessariamente original, em textura limpa e sem adornos, mas com uma inconstância de seu eixo. Essas duas escolhas partem do mesmo autor e se complementam, fazendo sentido e se justificando a partir das estruturas psicológicas de seus personagens e suas atitudes. Um dos fatores que provocam uma quebra de qualidade é, porém, uma certa descontinuidade de construção desses mesmos personagens, que parecem reagir de maneiras opostas com o andamento, quase com contradições. Isso poderia se justificar pelo estado de tensão em que todos se encontram durante esse dia retratado? Talvez, mas quando o roteiro quebra na metade, saindo de um melodrama urgente para uma narrativa de acerto de contas em ritmo de thriller, essa decisão claudicante parece tomar conta de toda a narrativa.

Essa decisão de elevar a tensão do filme para uma seara policial não amplia o escopo de compreensão daqueles tipos, e só confina a história a um objeto de recriação de gênero que até flui com progressão, mas cujo todo não se observa com coerência. Cada um dos personagens presos a essa segunda parte tem sua qualidade testada pelos intérpretes dos mesmos, mas que se realizam em polos opostos ao que a família base do filme compreendia da narrativa. São construções mais ligeiras, com poucas nuances, que acabam funcionando como veículo para a trama do que como o núcleo principal, que ainda cujam personalidades passeiem por conta das mudanças de 'regras narrativas' que se estabelecem, fazem sentido naquela estrutura. Vale ressaltar o acerto da composição e criação de uma personagem específica, a mãe da ex-namorada de Ben, que tem um recorte positivamente inusitado. A grosso modo, essa segunda metade trai o projeto mais do que ajuda, ao incorporar a forceps uma nova categoria ao projeto.

No fim das contas, O Retorno de Ben está 90% do tempo nas mãos de Julia Roberts e Lucas Hedges, e isso é o que poderia ter de mais positivo a um projeto carente de solidez todo o tempo. Em duas performances complementares e dependentes uma da outra, Ben e sua mãe são criados cheios de relevo e suas alternâncias de tratamento entre si são acentuadas pelas interpretações ricas de Julia e Lucas, que tem potência forte no desenvolvimento das emoções e das confusões de como eles se relacionam e compreendem suas falhas, como mãe e como filho. O desfecho do filme segue o curso de manter em suspenso as certezas que a proposta narrativa apresenta, de colocar aquelas vidas em fluxo e compreendidas como reféns da vida em si.

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