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Ritual dos Sádicos, O

(Ritual dos Sádicos, O, 1970)
7,9
Média
60 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Instinto e putaria num efeito transgressoroso de despsicotrópicos

10,0

Pessoas não mais estranhas que você. Zé do Caixão num discurso. Já serve como impacto invocado. E logo a posteriori da sacanagem da música sacra seguida de altos gemidos femininos – feroz corte seco – forma safado efeito contrastado. Esta devassidão conceitual já mostra a conhecida falta de delicadeza maravilhosa do José Mojica Marins. Seus filmes primavam pelos marcantes discursos escalafobéticos e primal-verborrágicos, prosseguidos por decidido horror de brutalidade frontal num primitivismo orçamentário sempre driblado com sagacidade. Continham uma esquematização frontalmente objetiva e cronológica. Não que esta última parte seja um demérito. A mensagem sempre era muito bem passada e aproveitada sob a égide da escolha mais tradicional. Nesta sua nova pedrada, Zé solta-se das amarras e alopra tudo nesta espécie de narrativa-conceito de si próprio e desse personagem que inventara. O horrorífico descontrolador com tesão no abuso da linguagem e das criaturas humanas.

Patroas nuas. Experimental e radical. Shakespeare na caveira e Moisés com o cajado, e o que o último faz com este objeto. Fita de iconoclastia moral, social, religiosa (claro) e social. Mojica não tem meias medidas, então expõe logo de começo sua intenção de chocar. Moças em devaneios sexuais obrigatórios em prazer aniquilador numa fuleiragem que finda num cruel estupro. Se ligam do cajado? O que diabos é este negócio de imagem? Os estalos de dedos seguindo o espetáculo dantesco de música e dança erótica culminando num desbunde radical ao mostrar violências consequenciais do consumo dos entorpecentes, e expondo a atrocidade com as fêmeas. O que é esta fita? O cinema tradicionalmente na sua gênese de linguagem conhecida, na massacrante maioria das vezes, impõe suas relações antagônicas. Bem contra o mal e o escambau. Grossamente em vários casos. Zé desenvolve o assombro do exagero dentro desta condição. Mostra o absurdo através daquilo que é mais doente no sujeito para contrapor, continuamente, a crítica futura. Não há hipótese nenhuma de finura na sua obra. Funciona como um machado a cortar tenra árvore com pancadas brutais e contínuas, sem descanso. Não se obriga a ser condescendente com nada. Aqui mora, primordialmente, a libertinagem existencialista de seu cinema.

Os planos nas pernas das mulheres. Por trás. Exibindo-as. As taras. Fotografia esplêndida de Giorgio Atilli, a seguir os direcionamentos doentios do mestre Zé, expondo toda a esculhambação com seus zooms-in chegando nos supercloses em exagero – já conhecidos desde À Meia-noite Levarei sua Alma (1964). Encaixando perfeitamente no caráter de desordem da fita com cortes brutos nesta montagem ligeira. A luz sensacional do Atilli. Claros e escuros de contrastes. Temos um branco mais proeminente nas sequências primeiras onde impera o visual chapado e objetivo das torturas e esculachos sem freios. As drogas e seus efeitos e consequências. A escuridão é escolhida no programa de debate televisivo, com uma edição mais resfolegada, diminuída na velocidade dos cortes. Soturna. Fachos de luz nos rostos dos estudiosos na escuridão, numa busca por respostas dentro dum ácido debate intercalando os segmentos das farras dos dopados. A diferença de luz é chocante entre as duas perspectivas. Como se estivéssemos sendo testemunhas da desgraça na parte mais chapada e incômoda, enquanto noutra chave os nossos desejos e rompantes lisérgicos impetuosos e escrotos fossem despedaçados na escuridão onde a iluminação, na base da lombra, fosse substituída pelo discurso de condutas propositalmente conservadoras num pretume objetivado.

Experimento. A escuridão continua. Constante. Um médico experimenta a figura do personagem coveiro Zé do Caixão junto às drogas – com 4 voluntários – e como seriam os efeitos deste experimento, não antes de debater os mesmos efeitos vistos nas cenas primeiras na conhecida mesa da escureza. Mojica no início age em silêncio como uma figura etérea ao debate. E em seguida, de forma cínica e contundente, mostra-se, maliciosamente, como um humilde e inculto perante aqueles supostos catedráticos à marginalizarem-no com desimportância. Ou seja, aquele local de turvamento assim o é devido a várias questões. O desrespeito visto sobre Mojica adentra numa realidade vivida pelo cineasta no período. Zé é o objeto e, como tal, mais importante e complexo que as teses ensejadas. Gênio ou farsante? O revés chega com lapadas metalinguísticas. Suas respostas são diretas. Ele é o cineasta Mojica, e sua arte é visceral. Assim ele responde um detrator em outro momento, quando seus filmes são alcunhados como afirmações selvajarescas. “Pelo menos são odiados”, responde o chefe de filmes de cinema. A contundência da sua arte vale mais que titularidades academicistas defenestradoras. Voltando à tesuda fotografia. É ela que torna possível a grosseria discursiva dum Mojica absolutamente endiabrado e consciente daquilo que quer acertar. Mostra a segurança daquilo que ele como diretor e personagem assim o são. Sua obra é feita de grandes antagonismos, e estes não existem por conta de narrativas e deambulações difusas. Eles se projetam nas imagens. Seja no clarão da tortura ou no escuro da demagogia. Crasso maniqueísmo rebolado para cima e metralhado pela câmera dum gênio. 

O esquema. As drogas. O Zé. Os pirados. PRETO E BRANCO. Os rituais taradosos resultando nos carniceiros drogados. Primeiramente a corrupção pelos inferno-fármacos. A mãe sedada olhando transa da filha e alisando tesudamente um bicho. Bestialização voluptuosa. Zoofilia. Dona trai marido e choraminga. Chifre e tesão. Adultério. A lavada dos sutiãs como o viagra das antigas. O Arnold Layne dos trópicos. Burusera. Porcão viçando na cocainomanice de só olhar o sexo. Voyeurismo. Fêmea defecando sob as vistas dos verminosos. Coprofilia. Tesão ao porradar as moças. Sadismo. Sai a perversão dum P&B duro e entra o colorido destroçador e alucinatório capitaneado pelo médico e seu grupo de voluntários. As cores nas lombras de cada um. Tortura, depravação, avacalhos em geral e desespero. Zé nos recônditos delirantes. O som magistral nas várias gemedeiras se unindo numa maçaroca interminável e altamente incômoda. COLORIDÃO. A presença do Zé personagem num estratagema de legado e invasão do subconsciente. CARA 1. Olhando mulheres à solta sendo chicoteadas por um Zé do Caixão irascível. A escravização da fêmea. LOIRA. Apanha para um cacete e perambula entre esculturas escapando da bestialidade dos homens à quererem corrompê-la, estuprarem-na e os carambas. SENHORA. Viçando, se esgueirando e girando através dum plongée. Recebe os discursos do Zé. Nadas numa poesia do macabro de incertezas. Coisa nenhuma. CARA 2. As caras nas bundas. Literalmente. Confusão e descomedimento visual num vermelho forte a se sentir seu peso com todas as abominações carregadas no caminho. O inferno da carne. Glória da dor. Aqui mora outro antagonismo do Mojicão. A percepção dele acerca da degradação dos estupefacientes com consequências reais no reluzente sujo descolorido. De resultados devastadores. Enquanto, a seguir, o colorido abusivo investiga o âmago íntimo doentio dos sujeitos humanos com um Zé no comando alucinatório alimentando o que lhe é dado. Enaltecedor de julgamento ou uma decorrência direta dos narcóticos? Zé em tudo. O coveiro imaterial. A encarnação do demônio. Alguém tem alguma dúvida do porquê que este negócio fora proibido pela censura? Uma maldição sem tamanho.

Um tropicalismo sinistramente escroto. Revolução através da forma. Onde o Mojica sempre teimava. Este material é exatamente o zênite do seu âmago criativo aloprando sobre fórmulas prontas e chibateando com este cinema barbarizado, sagaz, e preocupado em espatifar. A raiz musical do movimento brasileiro tropicalista – alcunha tirada da exposição Tropicália (1967) do artista plástico Hélio Oiticica – abraçava o colorido e o deboche como marcas de sua agitação, tanto estética quanto política. A intenção de Hélio e de monstros do gabarito de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Rita Lee e Os Mutantes e cia, era um convite à penetração em algo vibrante, novo e, sobretudo, livre. O cinema do Zé usava as cores numa torturante lisergia mental para culpabilizar os organismos homo sapiens por suas próprias merdas. Havia o mesmo convite, porém, de direcionamento macabroso e não sem uma liberdade tácita. Vai quem quer. Assiste quem quer. Por isso as cores vibrantes, além da óbvia relação com os tais efeitos dos psicotrópicos, existem como algum catalisador visual duma obra contestadora a sua maneira. Radical e sem freios, não seguia manuais de condutas sociais e políticas. Não agia como substância de protesto usual do período (nem o tropicalismo) tais quais filmes do Cinema Novo brasileiro, que abordavam questões sociais e se degladiavam com sistemas políticos. A desestabilização da linguagem traz tom acanalhador que a vertente do Cinema Marginal (de invenção) viria a expor. Uma proximidade tácita. O país vivia sob uma ditadura já se tornando excruciante a cada dia, e a arte reagia. Estas vertentes citadas são exemplos desta conversa. As formas de agir dependiam da sagacidade dos envolvidos e do combate ao qual estariam dispostos a ensejar. De radicais ao sistema político à avacalhadores avulsos do mesmo. Mas o Zé seguia independente. Com sua própria fuleiragem contestadora. A independência dum estraçalhador.

Filme-conceito. O formato escolhido visa a construção duma formulação central. O efeito de drogas pesadas sobre a influência da imagem dum Zé do Caixão. E compõe-se com usufruto de contraditórios fodas – já explicitados acima – de imagem, som e montagem. Mas isso tudo tem um puta porém. Um “se” gigantesco. Um avacalho inominável vinculado ao poder da sugestão. O horror no subconsciente. Não tem droga porra nenhuma. A experiência fora concatenada mediante um efeito placebo de indução psicológica sem tóchicos. O que entorpeceu a galera não foram os estimulantes droguistas, mas, sim, suas próprias marmotas internas enaltecidas pela imagem estarrecedora dum Zé do Caixão personagem. Então o moralismo foi para a casa do cacete? Zé manipulou a todos, dentro e fora das telas. Mostra. Avança. Engana. Desce a chiba nos tóchicos num primeiro momento para afirmar que a culpabilidade ao fim é amplificada por injunção humana sem necessidade dos entorpecentes. A música final ambiciona isto. Discursa sobre paz, enquanto homens continuam a levarem moças para a putaria acompanhada de morticínio, da mesma forma que a primeira manceba morrera no início da obra, trespassada pelo cajado. Mais uma contradição fenomenal e o plano final de um Mojica gargalhando debochadamente sobre seu cinema. Zé subverte a subversão. Escolhe impor a condição podre do ser humano como âmago de sua obra. Onde as agulhas, líquidos, pós e fumos seriam um amplificador libidinoso, assim como a imagem de si. Uma lógica própria. As drogas são desgraças, mas nunca piores do que você.

Primeiro Plano do rosto de José Mojica Marins.

Gargalhada.

CORTA.

                                                                                                                               Texto integrante do Especial Zé do Caixão
Partícipe do Especial Abrasileiramento Apropriador do Halloween

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