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Críticas

Cineplayers

O (bom) coração de leão.

9,0

É impossível pensar em Rocky, Um Lutador (Rocky, 1976) e não traçar um paralelo com a situação vivida por seu idealizador à época, Sylvester Stallone.

Rocky era um pugilista que tinha potencial, mas viu o tempo passar e o sucesso nunca chegar, fazendo lutas pequenas por trocados enquanto não estava trabalhando para um agiota da região. Certo dia, em uma jogada publicitária da equipe de Apollo Creed, o campeão mundial de boxe, Rocky tem a oportunidade de enfrentá-lo pelo cinturão em um evento que deveria ser festivo para salvar uma luta condenada (o desafiante havia se machucado), mas que se mostrou uma verdadeira lição de força de vontade, de persistência e com uma mensagem que nem tudo na vida depende só de dedicação, mas também de um pouco de sorte.
 
Stallone hoje é um nome forte na indústria, mas na época ele era um total desconhecido e apostou todas as suas fichas no filme. Os produtores Irwin Winkler e Robert Chartoff haviam oferecido 350.000 pelos direitos da história, mas ele negou e disse que só aceitaria negociar o roteiro caso fosse o protagonista – proposta arriscada para alguém com apenas 100 dólares na conta. Eles aceitaram, mas a United Artists nem tanto, reduzindo o orçamento previsto de 2 para 1 milhão de dólares; orçamento este que foi obviamente estourado, terminado com dinheiro dos próprios produtores (100 mil a mais), mas que acabou sendo um sucesso estrondoso, arrecadando milhões e milhões e iniciando a franquia que levaria Stallone ao estrelato.
 
Mas até ali ninguém sabia disso, era tudo uma aposta. Então, quando vemos o personagem acordando às 4 da manhã, comendo alguns ovos crus e partindo para treinar antes mesmo do Sol nascer para aquela surreal ocasião que caíra em seu colo (ele se encaixava perfeitamente em tudo o que Apollo procurava para engrandecer o evento), na verdade o olhar de esperança, de determinação, de disposição que vemos em tela não é de Rocky, mas sim de Stallone. Aquela era a oportunidade de sua vida.
 
Escrito pelo próprio e inspirado em uma luta real que ele havia visto entre Chuck Wepner e Muhammad Ali (Chuck era um lutador bem mais velho e deu um trabalho enorme para Ali, chegando a derrubá-lo), o filme trabalha um lado social não muito explorado, mostrando o dia a dia difícil de brancos de baixa renda. Todos os personagens que rodeiam Rocky possuem suas dificuldades: sua namorada chega a ser considerada retardada por alguns por praticamente não interagir com ninguém e trabalha em uma loja de pet shop cometendo erros primários, o irmão dela e melhor amigo dele é infeliz em um frigorífico, seu treinador é um frustrado que não consegue emplacar ninguém no esporte e por aí vai. Curiosamente, os negros possuem posições mais destacadas, desde Apollo, que é o atual campeão, até o rapaz que ganha o armário de Rocky na academia.

E se a história dá passos de transformar um sonho em realidade, não esquece jamais da surrealidade daquela situação: Rocky sabe que não pode vencer, por mais que treine arduamente em seus dias. Mas o que é a vitória? Existem vários tipos dela. Mais do que ser esforçado e determinado por um objetivo, vejo muito no filme um discurso de aproveitar a oportunidade, pois não adianta nada você ter uma chance de outro mundo e não fazer nada com ela; de nada serviria tudo o que ele passou até ali caso não causasse uma marca naquela situação. Então, a cada soco, a cada golpe, seria uma vitória para ele e para todos que se engajaram naquela oportunidade de conquistar algo pessoal – o treinador tem uma das cenas mais tocantes do longa.

É na simplicidade de todos e na mensagem universal que o filme cativa e funciona, certamente sendo o principal motivo da aproximação com o público. Afinal, não estamos falando de grandes épicos, de personagens fictícios ou de pessoas que jamais teremos a oportunidade de ser; no filme, quem está vivendo aquele drama e tentando ser alguém na vida são pessoas tão simples como eu e você.

Por conhecermos o personagem antes daquilo tudo, suas frustrações (Stallone tem fotos reais de quando jogava futebol americano no colégio penduradas no espelho, futuro que obviamente não se concretizou), sua solidão (apesar de ser um cara querido na vizinhança, não tinha muitos amigos), seu ciclo de convivência (cercado de pessoas sem perspectivas e insatisfeitas com a vida) e sua disposição (as cenas de treino, em particular, são inspiradoras, principalmente pela icônica trilha), que torcemos tanto por ele no ato final do filme, quando a luta finalmente acontece.

Tal luta é filmada de forma convincente, com alguns cortes característicos dos anos 70 (imagens embaçadas sobrepostas), e acreditamos nas vezes que Rocky acerta Apollo por dois motivos: 1. em vários momentos o filme chamou a atenção para o fato de canhotos serem perigosos e ele ser um; 2. Apollo estava levando aquilo como um espetáculo, sem seriedade, até que notou que a parada poderia ser mais dura do que ele esperava.

Um dos pontos que sempre me chama a atenção em Rocky a cada vez que o revisito é o modo belíssimo com que o diretor John G. Avildsen capturou a Filadélfia em suas câmeras: em um filme de contrastes a todo momento sendo chocados, é interessante ver como há beleza em ruas cinzentas, abusadas de cimento, sujas, de caos urbano e poesia, quando no dia a dia aqueles lugares não apenas são feios, como perigosos. Em tela, a imagem sempre está construindo versos e prosas com a sensação que a história quer criar. Há muita imprevisibilidade em sua mise-em-scène, mas isso deixa o filme lindo e natural.

A prova do cuidado na composição está no quadro que decora o humilde e nada aconchegante apartamento onde mora: a obra The Calling of St. Matthew, de Caravaggio, que mostra um homem sem esperança recebendo uma luz que o destaca da escuridão, como um milagre. Assim como Apollo fez com Rocky. Como disse Garret Chaffin-Quiray no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, "é a luta pela satisfação pessoal em um mundo indiferente". A visão que se tinha da vida era assim, obscura, sem esperança, até que tudo mudou.

Rocky é um daqueles filmes que eram para ser pequenos, mas por uma combinação de fatores, acabou gigantesco e maior do que qualquer um consegue explicar. É simples e um dos grandes representantes dos anos 70 com sua mensagem inocente, pura, sentimentalista, mas que jamais deixa de empolgar e inspirar, além de servir como registro de sua época.

É bem cuidado, feito do jeito que deu por ser realizado com grana limitada (destaque para o uso do inédito steadicam na cena da escadaria, a mais famosa), e gerou uma série de continuações que gradativamente foram minando a qualidade da agora franquia - até chegarmos a Rocky Balboa (idem, 2006), ironicamente aquele que todos olharam torto quando anunciado, mas que acabou honrando a obra original justamente por apostar mais no coração de seus personagens do que nas ações de seus músculos. Afinal, Rocky nunca foi muito sobre ser o melhor, mas sim sobre “levar porrada da vida e seguir em frente”. Palavras do próprio, mais experiente, alguns anos depois, e que mais uma vez inspiraram uma legião de pessoas pelo mundo.

- Dedico este texto ao leitor, e agora amigo, Daniel Borges.

Comentários (18)

jorge lucas | terça-feira, 05 de Maio de 2015 - 23:20

Primeira vez que eu vi me encantei tanto pela vida simples do protagonista que eu mesmo queria vivê-la um pouco.

jorge lucas | terça-feira, 05 de Maio de 2015 - 23:24

Ah sim, poucas vezes me emocionei tanto vendo um filme como na cena em que o Rocky corre atrás do seu velho treinador para trazê-lo para dentro de casa.

ana paula mello | quarta-feira, 06 de Maio de 2015 - 14:57

Tudo bem, o filme é bem feitinho, uma versão "polliana' masculina. Mas ganhar o Oscar de melhor filme, no ano em que Taxi Driver estava concorrendo é uma piada !

ana paula mello | quarta-feira, 06 de Maio de 2015 - 17:37

Pena que teve tantas continuações, não é Humberto ! Afinal, vale a máxima: "Nada se cria, tudo se copia"

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