Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Uma bandeira de resistência contra o nazismo registrada pelas lentes de Rossellini.

9,0

 

SPOILER!
A crítica discute passagens importantes do filme.
Leia por sua conta em risco.

 

É engraçado como os anos nos trazem um olhar diferente sobre as coisas. Quando escrevi sobre Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948), há doze anos (!!!), comentei brevemente e de maneira inocente sobre o Neo Realismo Italiano, movimento que registrava a situação e a reconstrução da Itália pós-Guerra. Só que ele nunca foi um movimento pensado, diferente da Nouvelle Vague ou do Dogma 95, e sim nasceu espontaneamente e da necessidade do cinema italiano não apenas dar forma aos gritos de sua população, mas também da arte exercer o seu papel como voz ativa política: nem todos eram a favor dos nazistas, havia resistência. Pensar no Neo Realismo como movimento intencional é industrializar uma época, algo que estava longe da realidade; os cineastas apenas queriam imortalizar em tela um tema em comum.

Roma, Cidade Aberta (Roma, città aperta, 1945) é um dos pilares essenciais desse registro histórico da Itália dos anos 40, de importância imensurável. Filmado por Roberto Rossellini de maneira precária, com atores amadores e desconhecidos (a exceção de Anna Magnani), cheio de dívidas e incertezas sobre sua conclusão e de limitação clara. Reparem como os planos, muitas vezes, são propositalmente curtos; isso não é opção de cinema como arte, é cinema como necessidade. Filmava-se como se podia.

As pessoas mal tinham o que comer e Rossellini não tinha como filmar direito, mas o filme ficou pronto e se tornou um dos pontapés iniciais de uma série de trabalhos que viriam a retratar pessoas como gente normais e suas dificuldades, ao lado de de Visconti e seu Obsessão (Ossessione, 1943) e de Sica com Vítimas da Tormenta (Sciuscià, 1946). O próprio Rossellini viria a retomar os temas daqui em alguns filmes posteriores, sendo o mais famoso deles Paisà (idem, 1946). Foi esnobado na Itália em seu lançamento, mas conseguiu grande sucesso posteriormente na França, para depois alcançar o mundo.

A história não é um conto de fadas. A Guerra tem lados, pensamentos opostos e dor. Em Roma, Cidade Aberta, esses lados são bem claros: a resistência e os nazistas. A dor está com a população, que sofre a consequência de tudo, sem muito o que fazer. Que morre, no meio da rua, apenas por defender o amor, que não tem vez naquela chacina injustificável, talvez na cena mais icônica do filme e inspirada em um fato real da época. A mulher, amante e protetora, corre atrás de seu noivo, no dia do casamento, que estava sendo levado pela polícia. O tiro não apenas interrompe sua corrida, como simboliza a cessão de várias vidas que foram levadas sem motivo e até mesmo sem conhecimento público. Ali, ela é apenas mais uma, mas na tela de cinema, é todas elas.

Na dança de protagonistas que há em frente à câmera, temos a óbvia leitura das vidas que vêm e vão em uma situação como essa. Começa-se conhecendo um homem da resistência procurado pela polícia alemã, mas termina com um padre, até então bem humorado (ele chega a colocar estátuas de costas uma para a outra, um santo e uma moça nua, num raro momento de paz), sendo morto e, em uma cena fortíssima, pedindo perdão ao Pai por aqueles que não sabem o que estão fazendo por ajudar umas pessoas - Rossellini sempre foi muito católico. A resistência sempre é vista de maneira serena, correta, perseverante... Sempre qualidades.

Sem medo de se posicionar, os alemães são o extremo oposto em personalidade. Consideram-se superiores, calculam e, sem o menor resquício de arrependimento, jogam carta na sala ao lado de uma pessoa que está sendo violentamente torturada. Eles chegam a sorrir, de consciência tranquila. Sua presença é sinônimo de morte, de traição, de poder. Ao mesmo tempo, suas atitudes enfraquecem seus ideais, que não combinam com os atos que seus representantes protagonizam. Sua violência é a comprovação da fraqueza ideológica. São impiedosos, cruéis, frios, fisicamente ameaçadores... Sempre defeitos.

Os lados são definidos assim, de maneira clara e sem nenhuma filosofia ou ambiguidade. O povo resiste, os nazistas matam. E Rossellini filma. Em ambos os lados, há os fracos: os viciados que traem amigos e depois se arrependem e alemães bêbados que questionam tal superioridade perante o que eles fazem para conseguir o que querem, discurso inaceitável para os representantes nazistas. Não há unanimidade.

A miséria torna-se discurso forte e imponente, um dos temas centrais do Neo Realismo. Pessoas brigam por pão no meio da rua, enquanto outros não sabem nem o que irão comer no fim daquele dia. O que a câmera registra do lado de fora não é cenário de ficção, e sim a situação real que a Itália, destruída no pós Guerra, se encontrava, entre escombros e resquícios de uma civilização, como ninguém deveria viver um dia. Destaque para o modo como as  mulheres são representadas, que aqui não são meras acompanhantes; elas têm personalidade, estão com o corpo a mostra, tomam posições fortes, em uma época onde isso não era tão comum. As crianças, símbolo máximo da inocência perdida, hora estão jogando bola, hora estão explodindo bombas contra os nazistas. Só com isso já dá para sentar e dar uma boa refletida sobre tudo.

Comentários (4)

Adriano Augusto dos Santos | domingo, 05 de Abril de 2015 - 09:44

Esse filme tem muita verdade na tela.
Mesmo que alguns tenham virado nomões do cinema,esse caráter não sumiu.

Cristian Oliveira Bruno | domingo, 05 de Abril de 2015 - 14:24

O mais bonito desse filme é sua simplicidade, seja ela intencional ou necessária. O Cunha voltou com tudo, hein....

Joéser Mariano da Silva | segunda-feira, 06 de Abril de 2015 - 13:18

Um dos casos raros se não único onde os meios são melhores que os fins, o resultado final é um filme pungente mas as vezes superficial, a forma quase clandestina e amadora de filmagem criaram um movimento sem par na história do cinema

Conde Fouá Anderaos | terça-feira, 07 de Abril de 2015 - 16:42

Esse filme merecia uma crítica faz tempo. Amo de paixão essa obra, o diretor capta a verdade (ainda que seja a dele) de uma forma que cala fundo até hoje. Cunha dissecou coisas interessantes, sobretudo quando fala de reflexão. Algo que estamos tão pouco habituados a fazer.

Faça login para comentar.