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Críticas

Cineplayers

A lei do desejo.

9,0

A década de 1950 foi uma das mais conservadoras e censuradas da história do cinema americano, exigindo assim um talento a mais daqueles cineastas que procuravam passar através de suas obras algo além do permitido. Alguns batiam de frente com as produtoras e tinham seus filmes proibidos e retidos; outros concordavam com edições finais rígidas, um processo que geralmente “desfigurava” por completo a idéia inicial do trabalho; e havia também aqueles que adaptavam suas histórias com o objetivo de driblar a censura, que é o caso de Elia Kazan e seu antológico Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire, 1951).

A peça original escrita por Tennessee Williams, Um Bonde Chamado Desejo, foi um sucesso de crítica e público nos palcos da Broadway e o texto foi premiado com o prêmio Pulitzer de Literatura. Kazan já havia dirigido a peça antes, em que descobriu ninguém menos que Marlon Brando, e a idéia de adaptá-la para o cinema veio logo em seguida. O grande desafio era encaixar essa história dentro dos moldes aceitáveis de Hollywood, já que seu tema principal girava em torno das mais diversas facetas do desejo, em especial o feminino. Até o momento, nenhum filme tivera coragem e ousadia de colocar em xeque um assunto tão delicado como a luxúria e as fantasias das mulheres. O mundo ainda era muito baseado em fundamentos machistas, e além de tudo havia no meio da trama um personagem de conotação gay.

Kazan encontrou no texto de Tennessee uma maneira de juntar o útil ao agradável, recorrendo então às simbologias. Assim como na peça original, o filme é repleto de personagens dúbios, que carregam em sua essência diversas nuances, mas todas muito bem disfarçadas, a fim de não despertar nenhuma atenção indevida. Cabia ao público enxergar isso por trás da história de Blanche DuBois (Vivien Leigh), uma mulher misteriosa que vai passar uma temporada na casa de sua irmã, Stella Kowalski (Kim Hunter), e de seu cunhado, Stanley (Marlon Brando). Dividida entre a repulsa pela personalidade bruta de Stanley e pela tensão sexual que se estabelece entre os dois, Blanche começa a entrar em um processo enlouquecedor ao relembrar do seu passado nebuloso e logo seus verdadeiros segredos começam a vir à tona.

Nascia no cinema, através deste filme, uma revolução em termos de atuações e em termos de roteiro. Como de costume nas peças de Tennessee Williams, os personagens ganham o maior destaque e conduzem a trama de acordo com a personalidade que lhes é dada. Até então era justamente o contrário que prevalecia, aonde as situações normalmente conduziam os personagens. Essa inversão de prioridade dá a Uma Rua Chamada Pecado seu maior triunfo: os diálogos. Colocados agora em primeiro plano ao serem proferidos pelos veículos principais do conjunto da obra (os atores/personagens), os diálogos dão força e se responsabilizam de fazer desta produção algo além do esperado, oferecendo ao elenco a oportunidade de brilhar em atuações conflituosas e até então inéditas em Hollywood. É a partir deste ponto que podemos dizer o quanto Marlon Brando e Vivien Leigh colaboram para um resultado final extasiante. O correto agora é analisar a composição de seus respectivos papéis, a começar pela Blanche DuBois de Vivien.

Em uma das atuações mais certeiras e calculadas do cinema, Vivien Leigh encarna Blanche DuBois com uma precisão de mestre. Herdeira de um refinamento aristocrático decadente, a personagem principal é um verdadeiro mistério, por mais que a câmera se foque em centralizá-la na maior parte do tempo. Atormentada pelo seu passado nunca plenamente revelado a nós espectadores, ela se vê diante de uma situação delicada ao sentir um misto de atração e repulsão por seu cunhado. Seu lado racional o vê como um brutamonte, mas seu desejo de mulher o anseia descontroladamente, o que só colabora para suas lembranças da época em que era casada (com um jovem que cometera suicídio) virem à tona. Gesticulando sempre de maneira excessivamente teatralizada e exagerada, perto do caricatural, Vivien Leigh consegue assim captar a essência de Blanche, uma mulher que ainda vive de aparências e que possui um lado emocional extremamente fragilizado. De certa forma chega a ironizar a superficialidade tão costumeira das atuações forçadas nos filmes americanos mais antigos, causando contraste com o que Marlon Brando propunha através de sua encenação como Stanley Kowalski.

Diferente de tudo visto até o momento, Brando revolucionou todo o conceito cênico hollywoodiano em seu papel. Realista, impiedoso e extremamente sensual, ele não revela técnica alguma, apenas uma naturalidade chocante, dado o personagem em questão. Assim como Stanley espanta Blanche com sua maneira de ser, Brando pasmou todos seus colegas de profissão com sua interpretação marcante (reza a lenda que muitos desistiram de atuar depois de o verem neste papel), sendo alçado rapidamente ao Olimpo dos atores mais cobiçados e requisitados do cinema americano. Sua roupa colada ao corpo pelo suor, sua presença como macho alfa da casa e o desejo faiscante em seu olhar representam nada mais do que a personificação dos desejos femininos mais selvagens, que ganham voz na pele de Stella, a esposa que não liga de ser maltratada pelo marido pelo qual nutre uma paixão cega e irracional (Kim Hunter merece maior reconhecimento por sua composição, essencial para que a obra atinja seu ponto máximo). Depois disso, Hollywood nunca mais foi a mesma.

Podemos agora entender a razão do título original fazer referência ao desejo. Para poder chegar à casa de sua irmã, Blanche precisa tomar um bonde chamado Desejo e logo depois um chamado Cemitério – a grande ambigüidade crítica de toda a obra. Afinal, é o tal transporte que tira Blanche de sua condição de mentiras e aparências para levá-la ao submundo da pobreza, ao som de jazz, que é Nova Orleans (cenário e gênero musical pouquíssimos explorados pelo cinema da época). O desejo irracional dela que a conduz rumo à perdição. É também esse o mesmo desejo que Stella nutre pelo marido, e que Stanley nutre pelas duas; o mesmo que leva o inocente Mitch (Karl Malden) a se apaixonar cegamente pelo mundo de ilusões que Blanche simboliza; o mesmo que fez no passado o marido dela se suicidar, depois de se descobrir homossexual (fato que ficou cuidadosamente implícito no processo de transposição da peça para as telonas). A força desse sentimento é tanta que loucura, mentiras, temores, pecados e tensão sexual explodem na tela a todo o momento através de diálogos riquíssimos e atuações memoráveis.

Kazan, por fim, merece destaque ao conseguir lidar com toda essa sucessão de ingredientes explosivos que formam a essência de Uma Rua Chamada Pecado. Sua direção é madura e inteligente, principalmente ao escolher cenários pequenos e claustrofóbicos, que diminuem ainda mais diante da tensão estabelecida entre todos os personagens. A trilha sonora regada a jazz é intensificada conforme Blanche vai piorando de sua saúde mental (como se entrasse na mente da personagem e reverberasse lá dentro com fúria), assim como vai desaparecendo sutilmente quando a personagem se recupera em momentos de lucidez. A iluminação se reveza entre ofuscante e esmaecida, também de maneira proposital, de acordo com a situação. O aspecto teatralizado amplia a força dos diálogos e das atuações, e a fotografia em preto e branco é certeira. Nada escapa à lente do cineasta.

Filmes que alcançam tamanha importância e relevância quanto Uma Rua Chamada Pecado são poucos (o que inclui a marca impressionante de três Oscar nas categorias de atuação). A maior prova disso está justamente na forma como envelheceu, sem perder um só de seus atributos durante a passagem dos anos. Ainda hoje é considerado obrigatório e indispensável na bagagem de qualquer cinéfilo, ator, dramaturgo ou cineasta. O desejo que emana por todos os seus poros passa a ser também parte da aventura do espectador ao assisti-lo. Se for verdade que temos que tomar cuidado com o que desejamos e que o desejo é capaz de mover céus e terra, então todos nós, de certa forma, tomamos o mesmo bonde de Blanche em algum momento da vida, torcendo para que ele não nos consuma a ponto de nos deixar na mesma condição dela.

Comentários (9)

ALINE TAINA | domingo, 27 de Janeiro de 2013 - 14:31

Linda crítica! Comecei a me apaixonar por Brando nesse filme ele estar impecável e Vivien Leigh fez uma interpretação épica.

Renata Correia Nunes | quarta-feira, 03 de Julho de 2013 - 23:13

Esse filme é tudo! O Marlon está maravilhoso em todos os sentidos (ui!), mas eu achei a Vivien um pouco exagerada em alguns momentos. Mas o filme é excelente demais!

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