Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O Pigmalião e a Galatéia modernos.

6,0

Na mitologia grega, Pigmalião era um escultor que, desiludido com as mulheres que o rodeavam, decidiu optar pelo celibato e esculpir a mulher perfeita, nem que ela existisse ali só de enfeite para saciar sua solidão afetiva. Através de uma benção da deusa Afrodite, aquela estátua de mulher ideal acabou ganhando vida e assim surgiu Galatéia – a materialização de tudo que um homem pode desejar em uma companheira. Algo parecido acontece com o personagem de Paul Dano, Calvin, no novo filme do casal Jonathan Dayton e Valerie Faris, Ruby Sparks – A Namorada Perfeita (Ruby Sparks, 2012). Diferente de Pigmalião, no entanto, Calvin tem a oportunidade de ver seu sonho de consumo ganhando vida não a partir de um bloco de pedra esculpido, e sim de uma história que acabou escrevendo depois de anos de crise criativa.

Assim como em Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006), o trabalho anterior da dupla, que os colocou no mapa como queridinhos da crítica, Ruby Sparks aposta em um humor modernoso e cheio de truques charmosos, mas não tão originais quanto tentam aparentar. A premissa, divertida por si só, ganha um desenvolvimento bastante previsível de uma comédia romântica com toques fantasiosos e um tanto infantilizados, à lá Manequim (Mannequin, 1987), clássico brega da sessão da tarde em que um vendedor fracassado de uma loja de departamentos se apaixona por uma manequim que ganha vida após o expediente. Portanto, o que resta de realmente interessante é a forma como os diretores procuraram usar essa curiosa trama para discutir primeiramente a relação de um artista com a sua arte e, junto disso, a incurável tendência humana de idealizar ao máximo seus relacionamentos amorosos.

Se na vida real procuramos fantasiar um par perfeito de acordo com nossas preferências, de modo a construirmos uma camada de neblina que nos impossibilita de enxergar nosso affair com razoabilidade, a ponto dessa pessoa poder se tornar em nossa mente quase um personagem fictício e não um ser humano real, em Ruby Sparks o escritor Calvin segue pelo caminho inverso. Ele já começa com a fantasia pronta, com a personagem perfeita. Interpretada por Zoe Kazan, que também é a roteirista (e por um acaso também é neta de ninguém menos que Elia Kazan), Ruby é uma garota ideal aos olhos de Calvin. Ela é extrovertida, vulnerável, linda, divertida, companheira, vivaz e inteligente – ou seja, sua metade da laranja (e a de qualquer outra pessoa). Acontece que, a princípio, ela não passa de uma personagem fictícia, a primeira criação relevante do escritor depois de quase dez anos de bloqueio criativo. De tão pulsante e vívida, Ruby não se aguenta apenas como uma mentira, então magicamente vira um ser real – tanto para Calvin como para todas as outras pessoas, o que pode nos possibilitar descartar a ideia de que o protagonista talvez seja um lunático em completo delírio.

Acontece que, de tão ideal e tão perfeita, Ruby passa a se tornar cedo ou tarde um problema. Afinal, fantasia demais parece não funcionar no nosso mundo real aos olhos de Dayton e Faris. Portanto, de sonho realizado, Ruby vira um pesadelo sem fim para seu criador. E é dessa situação que os diretores e a roteirista tiram suas melhores sacadas, ao discutir com bom humor o fato de que talvez haja uma razão maior, além de nossa compreensão, para que pessoas tão perfeitas como Ruby não sejam reais. Ou talvez o problema seja o próprio ser humano e sua mania de idealizar em cima do já idealizado, e de nunca estar contente com aquilo que se tem. O imperfeito incomoda, mas parece que o perfeito chega a incomodar ainda mais, por mais que o almejemos de qualquer forma. Resumindo: relacionamentos nunca são fáceis, e ninguém melhor do que um casal para dirigir um filme com essa mensagem.

Claro que há também o conteúdo que abrange as neuroses de um criador com sua própria arte. Calvin escreveu um sucesso literário instantâneo ainda jovem, aos dezenove anos, e desde então ele não consegue pensar em nenhuma outra ideia que seja tão boa a ponto de fazê-lo se sentir satisfeito por superar a si mesmo. Depois de muitas sessões com seu terapeuta (interpretado por Elliot Gould), da aquisição de um cachorro que parece ser perturbado e isolado do mundo por conta da influência de seu dono, e dos constantes desentendimentos com sua mãe maluca e o mala de seu padrasto (vividos por Annette Bening e Antonio Banderas), Calvin consegue finalmente criar algo relevante e empolgante com Ruby. Mas mesmo com algo tão ideal quanto ela – tanto como um fruto de sua imaginação quanto como uma namorada – o escritor parece ter problemas para assimilar e lidar com essa nova descoberta.

As ideias são interessantes, as mensagens que o filme procura passar também. Peca por nem sempre conseguir passar isso de maneira clara, atrapalhado por uma série de armadilhas presentes na atual onda de comédias românticas acometidas por essa vontade de parecerem sempre tão descoladas e cool, mas muitas vezes inegavelmente limitadas. Não há a singeleza, por exemplo, alcançada por Woody Allen em A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985), onde também temos um personagem fictício perfeito fugindo de seu mundo fantasioso para se misturar aos do mundo real. A avalanche de piadas insanas e a correria da narrativa dá a impressão de que se trata de um trabalho muito diferente e dinâmico, mas no fundo não passa de uma comédia romântica toda fundamentada nas cartilhas para o gênero. E isso não chega a ser um problema, já que Ruby Sparks e sua releitura cômica da história de Pigmalião e Galatéia diverte como poucas atualmente, mas talvez sua fama de filme diferente e criativo não passe de um comum equívoco.

Comentários (3)

Patrick Corrêa | sexta-feira, 19 de Outubro de 2012 - 08:42

O texto está maravilhoso e a nota também condiz com o filme.
Parabéns por mais um bom trabalho, Heitor!

Marcelo Leme | sexta-feira, 19 de Outubro de 2012 - 14:23

Bela análise, Heitor. 😁
Pena que esse não chegou por aqui!!!

E tem Deborah Ann Woll 😈

Alexandre Barbosa da Silva | segunda-feira, 03 de Dezembro de 2012 - 01:15

Não achei o filme parecido com comédias românticas enlatadas em nenhum momento. Aliás, achei o filme bem menos cômico do que esperava. Gostei do filme, embora se perca próximo ao final. Ficou com aquele gosto de faltou alguma coisa pra ser excelente.

Faça login para comentar.