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Críticas

Cineplayers

Um filme que marcou época e fez tanto sucesso que virou até perfume.

8,0

É entre cenários provocantes, figurinos maravilhosos e direção de arte irretocável que se desenrola O Samurai, filme de Jean-Pierre Melville que trouxe o filme noir norte-americano dos anos 40 para o caldeirão fervente da cultura pop francesa dos anos 60. A fotografia é impecável; a música, um excelente jazz minimalista; o roteiro, preciso, ágil, tem poucos diálogos, curtos, praticamente declamados por um elenco para lá de cool. Tudo engendrado com maestria por Melville, um gentleman que não existe mais, nossa cultura “big brother” impede que se produza mais do tipo. O filme foi um sucesso, é hoje cult, tem edição de luxo em DVD pela Criterion Collection. Impossível não gostar de O Samurai.

Alain Delon, então com 32 anos, alcançaria o auge do sucesso ao fazer aqui um de seus papéis mais marcantes, praticamente o que lhe definiu a carreira como símbolo sexual, ator conhecido em escala planetária, estrelato. Até perfume tem por conta do filme: chama-se, obviamente, Samouraï, para homens. Definiu também toda uma idéia do que seria a chamada elegância masculina. Foi com esse filme que surgiu um ideário de beleza masculina que duraria pelo menos até meados dos anos 80, quando os músculos de Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone trocaram os finos ternos pretos perfeitamente ajustados em corpos magros pelos esteróides anabolizantes.

Delon faz o assassino encarregado de matar um homem, mas acaba reconhecido pelos freqüentadores do bar onde ocorreu o crime. É solto pelas artimanhas das mulheres que o amavam. A polícia não engole a história das apaixonadas e fica no seu encalço, enquanto os mandatários do crime, preocupados com a perseguição policial, resolvem liquidá-lo. Cabe a Delon fugir dos bandidos e da polícia, conquistar a mocinha e destilar seu código de ética, furadíssimo, em tese inspirado nos samurais do cinema japonês (não levem a sério, é cultura pop).

Poucos atores foram tão felizes na escolha de seus primeiros filmes como Delon. Estreou na tela grande em 1960 em O Sol por Testemunha, de René Clement, dando o imprescindível charme ao assassino Ripley de Patricia Highsmith. Na seqüência, bandeou-se para a Itália e fez dois dos mais conhecidos filmes de Lucchino Visconti: O Leopardo e Rocco e Seus Irmãos, esse último no papel título do boxeador. Com o sucesso de O Samurai, estava encastelada no céu mais uma estrela do cinema.

Sem Delon, O Samurai não funcionaria. Tudo parte dele e sem a sua persona artística o filme jamais teria o mesmo impacto, apesar de que nunca foi considerado um grande ator. 

No IMDB, há quem diga que o filme é um estudo sobre a solidão ou uma alegoria sobre a França na época da ocupação nazista. Besteira. O filme é pura diversão, muito bem feita, terrivelmente estilosa e inteligente, de bom gosto – ou seja, dificílima de fazer, por isso a impressão de que se necessita de motivos externos para a admiração. Mas não é necessário ir muito além para se gostar sem culpa do filme. A Criterion Collection se esforçou: um ensaio de 29 páginas, Morte com Luvas Brancas, escrito por David Thomson, acompanha o DVD do filme com uma extensiva análise da obra e seus autores. Nele, de tão impressionado que ficou com as cenas detalhadas e impecáveis do filme, com a poderosa maneira de filmar do diretor, que lhe tascou uma daquelas famosas etiquetas: “neonoir”.

Afora os exageros, explicáveis, o filme é seu diretor, Jean-Pierre Melville, o padrinho ou pai espiritual da Nouvelle Vague. Foi ele o primeiro a testar, em 1946, as técnicas cinematográficas que os “jovens turcos” seguiriam nos anos seguintes. Reza a lenda que a gaiola com o pássaro no filme (metáfora da situação do protagonista) foi a única coisa que restou do incêndio que destruiu o estúdio de sua propriedade, construído como uma extensão de sua própria casa, em 1967, mesmo ano de filmagem de O Samurai. Outra lenda (o filme tem várias): Melville queria filmar a morte de Delon com ele sorrindo. Como ele já havia feito dessa maneira em outros filmes, o diretor e roteirista modificou na última hora, para o truque do revólver sem balas.

Segundo informa a Wikipedia, John Woo fez sua homenagem ao filme em O Matador (The Killer, 1989) – no DVD da Criterion tem um depoimento de Woo confessando sua admiração –, Chow Yun-Fat tirou seu Jeffrey Chow do Jef Costello de Delon, Walter Hill também se baseou no filme para Caçador de Morte (The Driver, 1975) e, por fim, Jim Jarmusch filmou os roubos de carros de seu Ghost Dog (1999) da mesma maneira que três décadas antes a dupla Melville-Delon o fizeram. Além disso, o persongem de You Shoot, I Shoot (2001), do chinês de Hong Kong Pang Ho-Cheung, idolatrava o Jef de Delon, vestindo-se como ele e “conversando” com ele por meio do pôster do filme.

Só uma amostra de quando o filme representou para o cinema, para a cultura francesa, para a cultura pop, para os anos 60 e até para a indústria da perfumaria – se não me engano, deve ser o único filme no mundo a ter sido engarrafado e vendido como essência. Da época em que os atores impunham seu bom gosto, e não como hoje, quando desfilam novo-ricos a serviço das marcas famosas – quem diz quem é elegante hoje são revistas de fofoca. Afinal, tinham inteligência, charme, personalidade, cultura e estofo cultural. Tudo isso nasceu e morreu nos anos 60.

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