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Críticas

Cineplayers

A Santa Joana humana de Otto Preminger.

8,5

O prólogo e o epílogo do Joana D’Arc (Saint Joan, 1957) de Otto Preminger constituem movimentos que divergem do filme exibido no restante do tempo. A inserção de um momento de abstração (por mais real que sejam os assuntos discutidos, se trata de um sonho fantasioso) proporciona uma liberdade de pensamento, de reflexão, de construção da visão do mundo e da sociedade que Preminger impregna em seus filmes. No prólogo, Joana aparece ela mesma como uma visão, uma voz que seria a consciência dos personagens que chegaram a condená-la. Porém, Joana não tem um tom inquisitório, nem de revolta ou vingança, mas sim um pragmatismo impressionante, um distanciamento de seu corpo, como se ela fosse mesmo a alma de si própria. Por conta de tal distanciamento, a personagem pode ser ela mesma e ao mesmo tempo emblema do propósito critico de Preminger. Sua Joana D’Arc do prólogo está ali a serviço do que lhe cabe como elemento narrativo; a Joana D’Arc do centro do filme é sua versão de uma santa, mas que em tudo assume sua humanidade.

O momento mais marcante do “processo” retratado na adaptação de Preminger da peça homônima de Bernard Shaw é quando Joana, já depois de motivar os homens, levar o exército a uma vitória crucial e sair consagrada, é presa e condenada à fogueira. Supostamente é dada a ela a opção de se livrar desse destino, e Joana, tentada pela vida, trai a si mesma e a seu propósito, dizendo ser uma farsante. É o único momento em todo o filme que a personagem não demonstra sua admirável crença em si e na função que suas vozes (as vozes de santos, enviados por Deus) lhe designaram. Joana é enganada pelos homens, uma atitude certamente vinda do Diabo, no olhar de alguém que se crê divino. Aqui, Joana é só humana, falha, “peca” e decide então enfrentar o que Deus havia decidido para ela. A câmera de Preminger não manipula o espectador a condenar Joana ou os próprios inquisidores, mas busca uma compreensão de sua condição.

Não há no filme uma única sequência de batalha, nem planos onde Joana adquire uma aura mitificada, como os contra-plongée clássicos do filme de Dreyer, A Paixão de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne D’Arc, 1928) que se tornou a adaptação mais célebre do calvário de Joana D’Arc. Para Preminger (e provavelmente isso já deriva da peça de Shaw) é fundamental que Joana seja vista como real, paulpável, cuja crença pode ser tida como uma obsessão irrestrita, mas que a aceitação de tal fato revela mais sobre o mundo ao redor que somente da atitude em si. Como diz um bispo, nas sequências de sonho onde Joana e outros personagens decisivos no curso da História aparecem, a execução dela foi uma decisão meramente política e que eles mal sabiam que seria uma má decisão, já que daí nasceu seu mito e ela se tornou mais forte morta do que viva. Preminger compreende essa política, a alma de Joana também, pois ela ainda era a constante absoluta em 1957, época do lançamento do filme, e ainda é uma constante hoje, em praticamente qualquer lugar do mundo. Não importa quais as circunstâncias que desencadeiam um conflito, ela sempre se assemelhará a algo que passou e sempre poderá ser relacionado a algo futuro.

Tudo muda e nada muda no filme de Preminger, pois o mundo onde Joana viveu se manteve o mesmo depois de sua morte. Sua fama floresceu, mas é basicamente essa a única diferença para aquele passado especifico. Por conta de tal impotência, o olhar para os acontecimentos que Joana decide relembrar junto do rei, no prólogo do filme, parece ter um tom suspenso, de percepcão frontal. Joana é captada como alguém completamente apaixonado, um amor nunca recíproco no filme, já que Deus não dá o ar de Sua graça. Mas a mesma paixão não é compartilhada pelos enquadramentos, pelos cortes, pelo ritmo e retratação de outros personagens fundamentais para que os acontecimentos tenham se dado. É como se todos fossem farsas de si mesmos e Joana fosse verdadeira, mas a predominância é do tom farsesco: as ironias, a sofisticação das tiradas sarcásticas estão ali em contra-senso com Joana e com o horror que ela vivenciará. A dissonância é impressionante, pois reafirma a diferenciação entre a consciência e a devoção, entre quem crê e quem é cético. Joana, ainda que santa, só percebe isso em forma de ilusão.

Entre o discurso e o retrato, no filme de Preminger não existe um limite muito claro. Isso cabe principalmente a este exercicio de reflexão, muito mais que a um propósito do diretor em desenvolver um tratado sobre a descrença na humanidade, através de uma personagem extremamente humana. Preminger parece mesmo se contentar com a não-solução, que talvez seja a única resposta possível. Ao que Joana pergunta no epílogo, para os céus, para a câmera, para Preminger, para nós: “Quando esta linda terra estará pronta para receber seus santos? Quando, Senhor? Quando?”, cabe somente um ponto reticente, interrogativo, final.

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