Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Sinais de virtude.

4,0
Uma das predileções em específico dos ativistas em geral que se encontra mais em moda é a de invocar o “J’accuse”, a famosa expressão consagrada pelo escritor francês Emile Zola contra uma das maiores injustiças perpetradas em seu tempo (o processo por traição e a perda da patente e encarceramento do oficial Alfred Dreyfuss). O que nenhum dos ativistas de salão estaria disposto, em se tratando de repetir o histórico de Zola, é em cair numa experiência como a de verdadeiramente viver entre os mais ferrados mineradores de carvão em Paris, no auge da Revolução Industrial no século XIX. Como o romancista francês o experimentou, para compreender, de fato, sem filtros nem subterfúgios, a existência daqueles indivíduos sobre os quais pretendia escrever. Comendo e bebendo nas mesmas tavernas, e sentindo na pele durante alguns meses as condições penosas de trabalho e suas angústias, no que resultaria em Germinal, famoso clássico literário, que não só continha uma desconcertante autenticidade típica das obras sem maquiagem nem floreios, como também um processo de cruzamento dialético em que, por mais que Zola concordasse com a causa dos mineradores, tampouco se permitia a abrir mão de ser duro com os seus personagens, no sentido de compreender que o ódio que os moviam contra a burguesia é também porque gostariam de estar ocupando o lugar delas. 
O que um certo ativismo no Brasil, no caso o do cinema, praticou não faz muito tempo, foi em filmar a vida de empregadas domésticas e de integrantes das classes baixas em geral, mas filmá-los de cima, e a uma distância falsamente próxima, de modo relativamente caridoso, demagógico. O que raramente ultrapassou ou transcendeu o que os americanos chamam de virtue signaling, o expressar pontos de vista querendo demonstrar uma suposta superioridade moral. Os personagens como um fator incidental, acessório, e por vezes ocupando um papel terciário numa narrativa em que público e realizadores se impõem como boas almas preocupadas, uma das tônicas de uma grande parcela de filmes do novíssimo cinema brasileiro, que ocuparia um dos centros da produção nacional na última década. 
Tematicamente, se utilizar de empregados e faxineiras remonta a um período imediatamente anterior ao do chamado novíssimo, com títulos como Domésticas - O Filme (idem, 2001), de Fernando Meirelles e Nando Olival,  numa abordagem um tanto cômica mas igualmente sociológica e caricata, e Santiago, de João Moreira Salles, este um documentário com preposições muito mais sérias e artísticas, por trás de uma conotação afetiva. Não exageraríamos em afirmar que pouco há do que se disseminou no cinema brasileiro dos últimos vinte anos que não tenha sido experimentado ou difundido antes por um Meirelles ou pelos irmãos Moreira Salles.
Santiago foi uma espécie de “vaca sagrada” da nova cinefilia e da crítica brasileira uns dez anos atrás. O filme conta com sequências artificiais como as folhas de árvore caindo lentamente na água da piscina, uma simples cadeira na varanda ou o saco plástico balançando ao ar no preto-e-branco chapado da fotografia de Walter Carvalho, simbolismo fácil casado com o esteticismo das imagens. E ainda travellings e recursos que lidam com a preocupação com o tempo e a memória que parecem emular alguns dos documentários mais antigos de Alain Resnais. A figura de Santiago, o mordomo, é a de um senhor simpático, com a qual o filme procura cativar. Um tanto exótico e de origem estrangeira e sotaque carregado que trabalhou para a família do diretor por mais de trinta anos, e que por vezes beira à loucura de tanta paixão e submissão pelos patrões. 
Ainda que ele tenha sido tão bem tratado e servido nas melhores condições e ambientes, reflete uma relação empregado-patrão que é próxima da relação personagem-realizador, como o próprio João Moreira Salles reconhece ao final, como tentativa falha de expiação; e por mais que o deixe falar, e esteja no habitat que lhe serve de morada, o personagem sugere um boneco-fantoche dirigido pelo realizador-ventríloquo. Santiago termina reduzido a uma peça de museu (nos créditos de abertura, em meio aos muitos prêmios internacionais, há o anúncio de que o filme foi adquirido pelo Museu de Arte Moderna de Nova York para o seu acervo permanente). Culto, letrado, poliglota, e de formidável memória, redigiu com ardor durante décadas em trinta mil páginas datilografadas notas biográficas e causos de famílias nobres, dinastias, milionários e aristocratas de países e povos diversos desde a Antiguidade (“Santiago não discriminava. Havia a nobreza de Hollywood e também a da França. Ele gostava das duas” — ao tratar das anotações sobre as estrelas de cinema no século XX). 
O que espelha uma tara que temos pelo poder; nem que seja a do fascínio pelo poder nas mãos do outro. Em tempos em que praticamente toda a classe cultural brasileira gostaria de ser empregada dos Moreira Salles, não espanta que tenha sido um sucesso o filme sobre um de seus lacaios. Algo remete à Cabra Marcado Para Morrer (idem, 1984), a obra-prima de Eduardo Coutinho, em que o diretor retorna anos depois a um filme que deixou de lado, no caso de Coutinho, sobre as ligas camponesas em Pernambuco, com a produção sendo interrompida pelo Golpe militar de 64. Santiago é o retorno de João Moreira Salles ao material que gravou com os depoimentos do mordomo, e com o qual num primeiro momento não soube lidar na sala de edição, engavetando o projeto antes da morte do seu personagem. 
Teria sido, entretanto, benéfico aproveitar também uma das lições do cinema americano clássico. Em que os homens buscavam realizar o seu trabalho, as suas obrigações e encargos da melhor maneira possível, quando lhes fossem um fardo ou não, mas dificilmente se reduziriam com tanta subserviência ao seu trabalho enquanto indivíduos ou à seus papéis sociais. Como no Górgias, um dos mais longos diálogos de Platão, no qual Sócrates é levado para conhecer o velho e famoso sofista Górgias. Ele é indagado sobre quais perguntas deseja fazer a Górgias, pois este se dispõe a responder qualquer pergunta que lhe fizessem. Sócrates então diz "Pergunte quem ele é'", ou seja, a substância do homem, para sempre a questão com que realmente vale se importar, e que deveria cortar a rede de opiniões, prova social, ocupação, ideologia ou papel que representa em um grupo. Muitos filmes, por mais que digam sobre seus personagens, não dão conta ou sequer reivindicam encarar essa questão de frente.
Voltando ao início desse texto, e agora tratando não tanto de Santiago, mas do cinema brasileiro como um todo, pelo menos o dos últimos vinte anos, é inegável a conclusão de que à julgar pelos discursos e pelos filmes, teremos sempre mais “J’accuse” e pouco ou nenhum Germinal por parte dos esforços e atividades de nossos realizadores. 
Texto retroativo da série Clássicos Brasileiros

Comentários (0)

Faça login para comentar.