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Críticas

Cineplayers

Manoel de Oliveira retoma personagens do clássico de Buñuel como pretexto para uma reflexão lúdica e um jogo perverso, numa bela homenagem ao antigo filme do diretor espanhol.

8,5

Deve-se deixar claro, para evitar equívocos de interpretação, que ao contrário de como é vendido, Sempre Bela não é a rigor uma continuação do genial A Bela da Tarde, de Luis Buñuel. São filmes de propósitos e particularidades tão distintas que correr para assistir o do português Manoel de Oliveira pensando em encontrar um prolongamento do de 1967 poderá redundar em uma retumbante expectativa frustrada. As narrativas de ambos os filmes tomam percursos dessemelhantes, por cada um deles pertencerem a tempos antagônicos, fazendo a descrição dos seus personagens em idades opostas dentro de suas existências.

Sempre Bela se apropria, trinta e oito anos depois, de um dos coadjuvantes do filme de Buñuel, Henri Husson (Michel Piccoli), que era uma figura um tanto à parte da narrativa central de A Bela da Tarde (mas crucial no fim das contas), para transformá-lo agora no protagonista desse novo filme. Para quem não lembra, Husson era o amigo próximo do casal principal que nutria um interesse dúbio em Séverine Serizy (a personagem de Catherine Deneuve, que precisava trair para amar o marido), investigando com interesse quase sádico o seu comportamento estranho e deixando ao final a grande dúvida de que se havia contado ou não para o marido paralítico de Séverine as aventuras sexuais da mulher.

Husson personifica o homem comum de bom gosto para uísques duplos, pratos finos e refinamento cultural, o tipo que no primeiro filme se encanta com a presença fenomenal da bela da tarde, mas consciente de que jamais lhe será possível conquistá-la ou tê-la em mãos. Sempre Bela evidentemente retoma também a figura agora envelhecida de Séverine (encarnada por Bulle Ogiers, uma das atrizes de O Discreto Charme da Burguesia), mas se em A Bela da Tarde a personagem era o núcleo central de todo o filme, o filme de Manoel de Oliveira toma o ponto de vista do personagem masculino, e por conseguinte, assumindo a própria perspectiva do espectador, pois o que era Husson senão mais um espectador tomado do fascínio e ávido pelo mistério de Séverine?

A oportunidade de Husson (e todo o público) em reencontrar Séverine quatro décadas depois é a chance de uma vez mais estabelecer contato com o encanto perdido daquela mulher impossível. Mas os tempos são outros, se a revolução de costumes dos anos sessenta estimulavam a liberação das fantasias mais escondidas de uma mulher casada, nesse começo de século XXI não há nada que se possa experimentar de diferente, restando a Sempre Bela formular um diálogo delicioso sobre os padrões transgredidos por Séverine (e por tabela, pelo mundo inteiro), e sobretudo uma reflexão sobre o tempo e os personagens, o presente e o pretérito. A proximidade da morte, a deterioração física de rostos e corpos, o peso das recordações do passado, e em como os mistérios da sexualidade e do desejo amoroso se configuram na velhice.

Do mesmo modo que em outros filmes de Oliveira, Sempre Bela oscila num plano onírico entre movimento / diálogos, dentro de um esquema que vai dispor os personagens como jogadores. Ao se deparar casualmente com Séverine a certa distância na platéia de um concerto, Husson tem sua curiosidade excitada ao sentir o desconforto da mulher pelo reencontro na troca de olhares de parte a parte. Na saída, Séverine lhe escapa, e o filme se apresenta como um grande divertimento na perseguição de Husson à sua antiga musa, perambulando em hotel, bares e ruas da capital francesa. Husson está muito velho, mas para ele as mulheres ainda se conservam no maior enigma da natureza, seja a dos quadros ou dos manequins, ou as prostitutas do café em que busca o paradeiro de Séverine, e onde relata ao barman a perversão e o sadomasoquismo da vida dupla da mulher que conhecera quarenta anos antes. Uma longa conversa que mais do que situar a história da obra anterior, se constitui com toda a sua argúcia no comentário mais penetrante que já se fez no cinema acerca do filme de Buñuel desde que ele foi lançado.

Sempre Bela estabelece os prazeres sádicos e perversos e os pequenos jogos lúdicos na procura de Husson, que força para o final um encontro com Séverine, que insiste em dizer que não é mais a mesma, e que almeja um recolhimento espiritual, em oposição ao seu interlocutor, brincalhão e sereno ao mesmo tempo. O filme de Oliveira também reintroduz elementos como a estranha caixa do filme de 1967. Com sua elegante sofisticação, o diretor português cria um décor de sonho, com uma concepção visual de encher os olhos nas cenas do bar ou na sala de jantar no final. E termina seu filme fazendo questão de preservar todas as dúvidas do original como um segredo muito bem guardado, um mistério não-violado, conservando a figura da mulher como uma eterna esfinge, para sempre um obscuro objeto do desejo.

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