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Críticas

Cineplayers

Um dos documentários brasileiros mais emblemáticos da década.

9,0

Quem afinal é este sujeito chamado de “brasileiro”? Indo mais além, o que é de fato o Brasil? Debater o que constitui a identidade de um país parece ser a mais nobre das funções do cinema, e é algo absolutamente inerente a este meio de expressão: é uma vocação. Essa questão permeou a filmografia Glauber Rocha, o cineasta mais importante do cinema nacional, em obras-primas como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964 e Terra em Transe, de 1967. São filmes que têm como mote levar ao público uma reflexão sobre quais elementos dão forma a essência do Brasil – utilizando, além de um enredo regional, uma forma estética que seria o reflexo de uma cinematografia genuinamente brasileira.

Espécie de herdeiro legítimo do cinema marginal e do documentário de guerrilha nacional, Serras da Desordem, documentário de Andrea Tonacci de 2006, vai direto no cerne da problemática nacional: o índio. O espectador é apresentado à trama por meio de um longuíssimo e não por acaso angustiante prólogo, numa narrativa composta somente de imagens e sons, apresentando a nós, urbanos não-indígenas, o universo do índio e todos os seus signos visuais e sonoros: uma linguagem incompreensível. Que mundo (cinema) é esse? É um solitário universo de paus e pedras, em meio a mata selvagem, onde o trabalho consiste em atividades inanimadas como acender a fogueira, arrumar a cama com folhas de palmeiras, simplesmente sobreviver. Socialmente, divertir-se tomando banhos em riachos com o seu grupo. O Brasil de verdade, enfim. Curiosamente lembrando muito a ideia inicial de 2001 – Um Odisseia no Espaço, a vida pacata dos nativos habitantes é corrompida quando um elemento estranho passa a invadir aquele ambiente inicialmente intocável: se em 2001 - Uma Odisseia no Espaço havia o monolito, em Serras da Desordem será o surgimento do avião, aquela estranha águia de metal invasora dos céus da floresta, a qual os índios atiraram flechas, que dará forma ao prenúncio simbólico do fim de um período imaculado.

E o trem, o símbolo maior da revolução industrial, o elemento que representa o fim da inocência, o rompimento com valores do passado e a falência de uma situação arcaica para a chegada de uma nova lógica mecanicista, é o signo visual recorrente no cinema justamente com este propósito comunicacional (como em filmes norte-americanos desde Aurora, de 1927 a Adeus à Inocência, de 1981). Em Serras da Desordem, será com o aparecimento do trem na aldeia indígena o ponto de partida utilizado para narrar uma era de transformações na sociedade brasileira. Imagens de arquivo de derrubadas de árvores centenárias, a construção da ferrovia transamazônica, entre outras, conduzem a um flashback que narra uma síntese da história do Brasil, culminando em imagens do milagre econômico da década de 50, usinas hidrelétricas, as campanhas das diretas já, Maracanã lotado de torcedores da classe trabalhadora, entre muitos outros trechos emblemáticos que fazem um resumo da trajetória da nação brasileira. Enfim, tem início o filme.

A história gira em torno da comovente saga de Ava Canoeiro, o Carapiru, índio da tribo dos Awa-Guajá, um mártir da história indígena brasileira – que serve de metáfora à própria gênese do homem brasileiro. Após um violento ataque do homem branco a sua tribo, Ava vagou sozinho, perdido pelo sertão brasileiro, até ser encontrado num modesto vilarejo no interior da Bahia. Nu, e sem saber absolutamente nada de português, vivia pacificamente com os moradores da região, apesar da incomunicabilidade. Descoberto pelo Incra e pela Funai, é resgatado, levado para a cidade de Brasília, ganha as manchetes na nacionais (imagens reais do arquivo do Jornal Nacional com Délis Ortiz são utilizadas no filme), o que culminará em uma  surpreendente descoberta sobre a vida de Ava, que é simplesmente chocante – algo que não será esclarecido neste texto, evidentemente.

A estética cinematográfica de Serras lança um debate: uma vez o índio inserido no mundo urbano de Brasília, a experiência cinematográfica agora é oposta: Ava, vestido, diante das ruas, dos carros e em frente ao Palácio do Planalto para nós faz sentido narrativo: porém para ele, no seu semblante angustiado, sua experiência sensorial na cidade é tão insólita como a que o espectador é levado a experimentar no início, no prólogo do filme, no contexto do universo indígena transposto para a linguagem de cinema. Qual é o verdadeiro Brasil? Imagens em película preto e branco são mescladas com o colorido digital; a instabilidade da câmera na mão é alternada com o plano fixo da câmera no tripé. É um documentário, mas que jamais deixa de ser todo encenado: os personagens principais deste filme foram interpretados pelas mesmas pessoas que viveram os fatos narrados. E há a questão da metalinguagem, a ousadia em avançar até o limiar entre ficção e realidade, e o caráter cíclico da vida e do próprio cinema: quando acaba a vida, começa o cinema, e vice-versa. Um país e um cinema com alicerces na desordem.

Historicamente, o cinema americano ganhou força com o western, retratando em cinema de ficção e entretenimento a opressão do homem branco europeu sobre o índio – ainda que muitas vezes o tom estava muito mais para o puro “bang-bang” do que para uma profunda reflexão sobre a identidade do norte-americano, assim como ocorre em Rastros de Ódio, de 1956, por exemplo. De fato, uma relação entre Serras da Desordem com o faroeste de Hollywood é deveras improvável, a não ser pelo curioso fato de que com este filme a cinematografia nacional ganha um representante de peso a tratar a dualidade entre o universo e a cultura do índio frente a civilização européia pós-industrial, debatendo a legitimidade da identidade nacional, tal como no gênero de cinema de faroeste. E assim, parafraseando o título dos mais importantes filmes da história do cinema norte-americano, Serras da Desordem é o nosso “Nascimento de uma Nação.”

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