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Críticas

Cineplayers

O desconforto como matéria-prima.

9,0
Caetano Gotardo tem um projeto de cinema em expansão. Algo nasceu em O Que Se Move e hoje cresceu e expandiu, ao passo que também ficou ainda mais íntimo. Íntimo também porque o corpo, o rosto, a própria pele dele tá exposta, toda impressa em seus trabalhos, toda feita de cinema e delicadeza. Seu cinema sempre foi o do desejo, o da liberdade, o da urgência, mas principalmente o da intimidade. Caetano agora versa sobre o desconforto que muitas vezes o lugar dessa intimidade traduz. Como é incômoda essa nossa relação com o que se deseja... Caetano quer mais e está muito maduro, para deixar claro o lugar onde se quer chegar.

Seu rosto abre o filme submerso na cólera, e dali vai amansando ao encontrar a amiga vivida por Malu Galli. Esse desconforto se declara na cena seguinte, onde o diretor não sabe se portar e passa por diversas tentativas de se manter firme. Várias outras cenas deixam essa situação explícita, como no primeiro encontro entre o casal de namorados; nenhuma dessas cenas tem o perfil de explicar essa alegoria do filme, que oferece muito mais do que essa questão apenas. João e Álvaro são esse casal, um diretor de cinema e um ator, ambos em dia com suas realizações profissionais, em uma relação amorosa aberta. Essa é a fina base do longa, que na verdade vai abrindo essa ideia de desconforto para lugares ainda mais complexos e urgentes, amplificando sua relevância.

Esse sonho com o confortável ou com a paz interior perpassa a vontade de reescrever nossas histórias de maneira contínua, até que sejam perfeitas. Ou próximas disso. O filme lida com essas questões no macro socialmente falando (com as revividas situações envolvendo pedintes nas ruas, onde João reage de maneiras distintas), e também no micro, com a intimidade das relações de João - sua amiga tem uma história da qual ela precisa se desapegar, ele mesmo parece querer mais de sua relação, ainda que não verbalize. Não apenas as histórias sejam reescritas, mas principalmente revividas mentalmente, até dar vazão a uma nova realidade.

Como dito, Caetano tem confiança no quer contar e não deixa praticamente nenhum tema de fora, com extrema atualidade. No meio de tudo isso, há um medo social que permeia a narrativa, sejam nas descrições de João ou quando ele é literalmente perseguido pelas ruas de São Paulo, uma cena angustiante pelo qual todos já passaram com toda certeza; "tem gente que sempre terá medo, por motivos maiores que você" é uma fala provocativa que coloca ao mesmo tempo a inevitabilidade do perigo hoje, assim como tira um pouco uma sensação de superioridade individual dos seres, em momento onde o egocentrismo deveria ser combatido.

As máscaras que parecem atribuir indefinição e as histórias que correm em círculos, sendo retrabalhadas sempre em registros repetidos mesmo com elementos que as torne diferentes, é uma sutil constatação da eterna busca pelo que já temos, vivemos e perseguimos, um 'looping' sentimental que Caetano corajosamente se encaixa. Em determinado momento, Álvaro ouve de João: "eu queria ser as pessoas que você ama, não tomar o lugar delas, mas sê-las", e esse é mais um aspecto do desconforto físico e emocional com a qual o diretor observa a sociedade hoje, com seus roteiro e direção requintados e ambiciosos. Todas as coisas podem gerar leituras novas e amadurecidas, sobre eventos de hoje ou de tempos atrás. Basta ter esse desconforto que nos obrigue a buscar além, e aceitar esse mesmo desconforto como mola propulsora do amor, da amizade e da arte, gerando artistas tão inquietos e delicados quanto Caetano.

Filme visto na Mostra de Cinema de Tiradentes 

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