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Críticas

Cineplayers

A perda de valores da sociedade, a degradação do ser humano e o surgimento de um grande cineasta em um dos melhores filmes dos anos 90.

10,0

Fato: não se pode levar a sério uma lista com o objetivo de compilar os maiores cineastas em atividade se ela não trouxer o nome de David Fincher. Com quase vinte anos de carreira em longas-metragens, o diretor ocupa hoje, sem sombra de dúvida, uma posição de destaque na indústria, com filmes capazes de agradar tanto o público quanto a crítica. Além de ser dono de uma incrível qualidade técnica, que se reflete de forma clara no estilo de seus filmes, Fincher ainda é um dos raros cineastas norte-americanos com a coragem de contar histórias incômodas, abordando temas polêmicos, inclusive realizando obras que se tornam verdadeiros espelhos da época em que estão inseridas, retratando, de certa forma, o zeitgeist desse tempo – filmes que, em função disso, apenas ganham força com o passar dos anos. É o caso de A Rede Social (The Social Network, 2010), uma obra magistralmente dirigida que propõe uma análise crítica sobre as relações humanas no novo milênio, e de Clube da Luta (Fight Club, 1999), um dos grandes libelos que o Cinema já produziu sobre o consumismo e a inércia da vida do homem no final do século passado – para citar somente dois dos trabalhos mais significativos do cineasta.

Tudo começou, no entanto, um pouco antes; mais especificamente, quatro anos antes de Clube da Luta, com a chegada de Seven - Os Sete Crimes Capitais (Se7en, 1995) aos cinemas. Até então, Fincher havia dirigido um único filme: Alien 3 (idem, 1993). Hoje, é difícil avaliar este terceiro capítulo da franquia estrelada por Sigourney Weaver como um trabalho do cineasta: sabe-se que a produção passou por diversos problemas, com a interferência do estúdio prejudicando de forma significativa a visão do diretor que, oriundo do mercado de videoclipes, não possuía poder para impor as suas ideias. O fracasso tanto comercial quanto artístico da obra (na verdade, o filme é mais interessante do que a imagem que se tem dele) parecia ter sepultado uma carreira que mal havia tido início quando Fincher realizou aquela que é, ainda hoje, uma das mais bem executadas histórias policiais das últimas décadas: Seven, um filme sombrio e corajoso, que chocou o mundo não apenas pelo seu final impactante, mas principalmente pelo clima de desesperança e a crescente tensão com a qual foi brilhantemente orquestrado.

Seven, na verdade, até parte de um clichê do gênero: a dupla de policiais formada por um veterano prestes a se aposentar e um jovem intempestivo. Mas é só. Não demora para que a plateia perceba estar diante de algo original, de uma abordagem diferenciada em relação ao que normalmente é realizado. Fincher demostra, logo que cara, que o seu objetivo é mais ambicioso do que contar uma simples caçada a um serial killer: ele tem algo a dizer e sabe como mostrar. As cenas iniciais, por exemplo, estabelecem de forma extremamente eficaz os protagonistas, ao mesmo tempo em que os momentos de silêncio já causam uma sensação de estranheza. Esta sensação, aliás, só aumenta quando surgem os créditos de abertura, uma pequena obra-prima dentro de outra, que consegue transmitir a visão de mundo distorcida que será discutida mais adiante pelo roteiro. Além disso, estes primeiros instantes já deixam claro o estilo da obra, tanto em termos visuais quanto narrativos: percebe-se que Fincher apostará mais na construção de uma atmosfera angustiante do que em sustos ou soluções fáceis – percepção que somente se comprova a cada nova cena de Seven.

A busca por esse objetivo começa pela própria forma com a qual o filme trata os personagens. O roteiro de Andrew Kevin Walker constrói David Mills e William Somerset de forma precisa, sem pressa, equilibrando bem o andamento do enredo com os momentos mais intimistas, que fazem a plateia compreender e, principalmente, criar uma identificação com eles: seja a solidão de Somerset em seu apartamento, seja Mills brincando com seus cachorros como uma criança, ou seja até mesmo o jantar no qual se permitem a um raro momento de alegria, cada instante soa verossímil, colaborando para a imersão do espectador na história daquelas pessoas. Aliás, muito disso se deve também aos atores: é difícil pensar em outros intérpretes encarnando estes personagens. Brad Pitt, por exemplo, que assumia um papel ousado por ir na contramão da imagem de galã que tinha na época, faz de Mills um policial dedicado, profissional, mas um tanto apressado, ao mesmo tempo que é capaz de transmitir todo o sentimento que possui por sua esposa. Em contrapartida, o Somerset de Freeman é o tipo de personagem que o ator se especializou em interpretar: o veterano sábio, calmo e culto, conhecedor da alma humana.

Há, porém, algo a mais no desenvolvimento destes dois personagens do que apenas a construção de seres tridimensionais como forma de tornar a jornada deles interessante. A parceria entre Mills e Somerset – que rende até momentos de bom humor – não se traduz unicamente na dualidade do novato contra o veterano ou na dicotomia entre o lado racional e a emoção; na realidade, o aspecto que se torna mais importante na dinâmica entre os dois é a oposição entre a visão otimista de um e o espírito pessimista de outra. É nessa forma antagônica de encarar o mundo que mora não apenas um elemento crucial da relação entre ambos como também um dos temas principais de Seven: a desesperança diante de uma sociedade na qual a perda de valores é vista como algo corriqueiro. Somerset, talvez pelo seu maior tempo de vida em relação ao colega, talvez em função de sua vasta cultura, sente-se deslocado no mundo, como se não compreendesse mais o sentido das coisas – desilusão que remete à forma de pensar do xerife de Tommy Lee Jones no recente e oscarizado Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007). Humano a ponto de ser o único a se preocupar se uma criança viu um assassinato, o velho policial busca somente fugir de toda a loucura, violência e insensatez da vida moderna. É emblemática a cena na qual entra num táxi e, diante da pergunta do motorista para onde deseja ir, ele apenas responde, melancólico, enquanto olha para uma aglomeração em torno de um corpo estirado em uma calçada: “Longe daqui”.

É neste sentido que Seven mostra ser muito mais do que uma história sobre a caçada da polícia a um serial killer; Fincher e o roteirista Walker têm uma mensagem, possuem uma visão de mundo a ser compartilhada, e o formato do thriller é apenas o veículo para isso. Como se não bastasse, a forma com a qual transmitem essa mensagem também é digna de louvores e está presente praticamente em cada detalhe do filme. Reparem, por exemplo, como jamais é dito o nome da cidade que serve de cenário para a narrativa, como se aquilo que é visto em Seven servisse como uma representação da vida de qualquer grande cidade moderna. Da mesma forma, Fincher aposta em uma paleta de cores escura e situa praticamente todas as cenas exteriores debaixo de constante chuva, causando a sensação de que não há escapatória desse clima opressivo de claustrofobia e sujeira – o sol só aparece no final da história, provavelmente mais por questões práticas, uma vez que criar chuva falsa em um espaço tão amplo seria um esforço hercúleo e certamente custoso ao estúdio. Há cenas que resumem à perfeição essa tese de Fincher e de Walker: a belíssima e sensível sequência envolvendo a confissão de Tracy a Somerset no café (“Como ter um filho em um mundo como esse?”), o momento no qual as visões distintas do veterano e de Mills se confrontam em um bar (“Não posso continuar a viver em um lugar que abraça e valoriza a apatia como uma virtude”) e, claro, a longa conversa entre os dois policiais com John Doe no carro, provavelmente um dos diálogos mais bem escritos das últimas décadas (“Nós vemos um pecado mortal em cada esquina, em cada lar, e o toleramos. Toleramos porque é comum, é trivial”). No entanto, Fincher ainda parece acreditar que existe um pouco de esperança, seja ao mimar uma criança ao máximo ou ao acreditar, como nas palavras finais de Somerset, que o mundo pode até não ser um lugar bom, mas ainda vale a pena lutar por ele.

E o incrível talento de Fincher para contar histórias também pode ser percebido em suas opções em relação ao próprio enredo policial. O cineasta foge do padrão do cinema americano ao apostar muito mais na força da sugestão e da imaginação do espectador do que naquilo que se vê: em Seven, é mostrado um único assassinato, perto do final do filme. Chega a ser até surpreendente para a plateia notar isso; existe a impressão de que todos as mortes de John Doe foram exibidas em seus detalhes gráficos e horrendos. Este, porém, é apenas um truque de Fincher, que prefere apenas expor o cenário após os acontecimentos, oferecendo algumas informações que levam o espectador a recriar as cenas em sua própria cabeça – e nenhuma imagem teria tanto impacto ou seria tão incômoda como aquela sugerida. É difícil não sentir um calafrio ao imaginar os assassinatos, cometidos de forma tão sádica e doentia que torná-los parte do filme provavelmente tiraria parte de sua força. Da mesma forma, também não deixa de ser louvável a sacada do roteiro de não explicar as origens de John Doe: o personagem permanece um mistério mesmo após o final da obra. O importante não é quem ele foi ou como chegou até ali, mas sim o que faz agora – e envolver o passado do personagem nesse breu o torna ainda mais ameaçador.

O que Seven também apresentou ao público foi o profundo domínio técnico de David Fincher, que faz ainda hoje de seus filmes um espetáculo à parte em termos de estilo e imagem – chegando ao ponto de o cineasta realizar O Quarto do Pânico (Panic Room, 2002) com o único objetivo exibir toda essa sua capacidade. Assim, Seven também é uma produção impecavelmente realizada em termos visuais, com Fincher posicionando sua câmera sempre em ângulos precisos, capturando de forma belíssima os seus atores e ambientes. Aliás, beleza que, mesmo em um a narrativa pesada como aqui, ainda se faz presente: é difícil não ficar encantado com a poesia da cena de Somerset desfilando em meio aos livros da biblioteca ao som de música clássica. Como se não bastasse, Fincher ainda exibe seu talento em termos narrativos, ao compreender o filme como um todo e construí-lo em um crescente de tensão que vai se acumulando até quase explodir ao final. Até mesmo quem já viu o filme e sabe o que irá acontecer sente um frio na barriga enquanto os planos aéreos acompanham o carro que carrega John Doe, William Somerset e David Mills a algum destino que os dois policiais ainda não conhecem.

Seven, especialmente em seu terceiro ato, é um trabalho executado de forma irrepreensível, onde cada detalhe, da edição à trilha sonora, das atuações ao roteiro, do trabalho de câmera à construção narrativa, parece entrar em harmonia de forma rara, formando um todo coeso que gera desconforto, por ser objetivo da história, mas, ao mesmo tempo, encanta e fascina, por ser uma obra de arte em seu mais pleno sentido.

Em certo momento da produção, David Mills fala a John Doe: “Em dois meses, tudo será esquecido”. Essa talvez seja a única grande falha do filme: já se passaram dezesseis anos e Seven continua lembrada como uma das grandes obras recentes do Cinema.

What sick ridiculous puppets we are
And what gross little stage we dance on
What fun we have dancing and fucking
Not a care in the world
Not knowing that we are nothing
We are not what was intended.

- John Doe

Comentários (23)

Rodrigo Torres | segunda-feira, 12 de Setembro de 2011 - 16:27

Texto à altura do filme: excelente!

Carlos Felipe Lucca | quinta-feira, 06 de Outubro de 2011 - 22:12

Excelente texto. Grande Diretor. Ainda espero grandes filmes dele. Uma salva de palmas😁

Cristian Oliveira Bruno | sexta-feira, 22 de Novembro de 2013 - 14:29

Clássico absoluto!!! Fincher é um gênio. Brad Pitt é bom ator, Morgam Freeman dispensa comentários e Kevin Spaicey como John Doe dá um show em poucos minutos na tela. Tem lugar especial na minha coleção.

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