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Críticas

Cineplayers

Vício é o que vistes muitas vezes.

7,5

Visto à distância, sem uma real aproximação com os seus trabalhos, o diretor inglês Steve McQueen e sua obra podem gerar uma desconfiança quanto a um suposto sensacionalismo dos seus temas. Fome (Hunger, 2008), o seu longa anterior, foi considerado um violento drama político sobre a greve de fome promovida numa prisão da Irlanda do Norte por membros do IRA. Já a nova parceria do cineasta com o ator Michael Fassbender, Shame (idem, 2011), tem sido vendida como o percurso de um viciado em sexo e sua solidão inevitável. Colocada assim dessa maneira, a descrição poderia sugerir do começo ao fim uma sucessão de cenas explícitas e propositalmente polêmicas em busca do impacto fácil.

Não é o caminho que o diretor britânico escolhe. Ele prefere investir a maior parte do tempo no isolamento e na reclusão emocional representados fortemente pelos olhares e expressões faciais no semblante de Fassbender. Shame, na verdade, é a história de um sujeito viciado em pornografia. Brandon (Fassbender), burocrata na faixa dos trinta anos, tem por distração correr atrás de mulheres, mas se ocupa mesmo é em buscar sexo na internet ou se masturbar em seu apartamento em que esconde apetrechos como vídeos e revistas pornográficas. 

Em suas reflexões, o filósofo e imperador romano Marco Aurélio concebeu, dentre muitas outras, uma máxima lapidar: “vício é o que vistes muitas vezes”. O sexo, como todo um imaginário particular oferecido pela vastidão de dados e informações no mundo contemporâneo, se torna para o protagonista de Shame não mais que uma repetição incessante marcada pela força do hábito, não pelo prazer ocasional e libertador. O próprio diretor foi preciso ao definir o filme da seguinte maneira: “é sobre como a liberdade de alguém pode aprisioná-lo". 

Não é difícil concordar com o cineasta quando ele defende que seu filme adquire uma dimensão política a partir desse sentido. Distantes de maiores ligações emocionais e afetivas, e menos críticos e realmente atuantes perante o mundo que nos controla, ficamos anestesiados com as ferramentas que a tecnologia da vida moderna nos proporciona, simbolizadas em Shame com o sexo (e a pornografia) já não mais como um segredo bem guardado ou um mistério escondido para cujo encontro e revelação nos tornarem livres, mas sim nos prender no seu repertório de imagens e em todas as formas como ele se oferta a um palmo à disposição de qualquer individuo. Uma condição desencantada, direta, sem fundo, sem mistério – e lúgubre exatamente por esta falta de mistério dentro de uma forma abstrata de prisão. Brandon, o protagonista, pensa constantemente no orgasmo como um dependente obcecado em saciar a sua vontade por um vício, seja nos acessos aos chats pornográficos ou nos programas com prostitutas ou outras mulheres com que se relaciona em sua vivência isolada e pueril.

O contraponto para Brandon é representado pela chegada de sua irmã caçula, a frágil Sissy (Carey Mulligan), para uma visita que se estende indefinidamente. A irmã traz um colorido turbulento, um pouco de música e o caos emocional para o ambiente asséptico que Brandon construiu em torno de si e que tomou forma à sua imagem e semelhança. A esta solidão ameaçada reage com uma fúria desorientadora. Ambos sofrem pela falta de vínculos emocionais e românticos: ele por evitá-los, Sissy por não consegui-los. Cada um caminha de um jeito diferente rumo à autodestruição a que parecem fadados.

Shame é um filme potente e crítico sem pose nenhuma. E dedica a Carey Mulligan alguns de seus mais belos momentos, entre os quais quando dá forma a um estado de melancolia enternecedor ao cantar “New York, New York” inteira em uma reunião com amigos num bar. Mas é com o personagem de Fassbender que o filme opera certa depuração formal de uma representação humana, numa tentativa de torná-la mais palpável tanto pela atmosfera quanto por sua via dramática, em meio de uma dinâmica rigorosa de cena e de montagem. Uma das cenas-chaves do filme é o longo diálogo no jantar em um restaurante. Os enquadramentos precisos, fechados, com que o filme normalmente enclausura o protagonista, reforçam a sua rotina de vida como uma experiência aberrante e estéril ─ quando tenta se relacionar com uma mulher que realmente lhe desperta interesse, fracassa. O que culmina numa longa sequência perto do final que por si só é uma obra-prima, numa edição fragmentada e desordenada, como a representar o fundo do poço do inferno pessoal do personagem. Um perfeito (anti-) clímax para um filme que contempla uma beleza sem vida, de movimentos frios, mecanizados. Depois, o último flerte no metrô, nos olhares trocados pelo protagonista com uma bela mulher sentada num banco por perto, nos permite compreender que aos seus olhos ela como ele próprio já nem parece mais de carne e osso, e sim uma boneca de porcelana a lhe servir de brinquedo. Shame, no fundo, é uma história de um corpo frio sem alma.

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