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Críticas

Cineplayers

Peter Weir analisava o efeito da mídia sobre as pessoas.

8,0

Peter Weir é um dos grandes nomes do cinema contemporâneos. Nascido na  cidade de Sidney, em 1944,  este diretor australiano é o responsável por pérolas como o inesquecível Sociedade dos Poetas Mortos,  o contundente A Testemunha e o drama de guerra Gallipoli, entre outros. Em cada um de seus filmes, Weir deixa implícito um misto de idealismo e inconformismo, um certo espanto diante da estrutura social que, muitas vezes, funciona como perfeita armadilha a aprisionar vítimas que se debatem, mas acabam presas irremediavelmente. 

Em O Show de Truman, Weir mantém essas características, mas também assume tom sarcástico ao retratar a profundidade do aprisionamento dos homens ao sistema que os cega e os atrela à condição de pouco mais do que autômatos. É o que se pode chamar de “comédia séria”, pois harmoniza momentos engraçados a um conteúdo de valor inegável. 

O filme, que apresenta Jim Carrey como Truman Burbank (um dos personagens mais importantes da carreira do ator), é uma crítica ácida à grande mídia e ao sistema capitalista que se serve da indústria cultural para propagar os valores (em sentido ampliado) que o sustenta. Truman seria um homem comum, não fosse o fato dele ser o astro de um programa de televisão, o Truman Show, transmitido vinte e quatro horas por dia. Vendido por sua família ao nascer, a um produtor de televisão (Christof, Ed Harris), o protagonista foi encerrado nos limites de uma cidade cenográfica onde passou a viver. Todos que o rodeiam são atores, seus companheiros de trabalho, amigos e até a esposa. Nada é verdadeiro. Cada ação que envolve sua vida é prevista e ensaiada, cada fato é manipulado pelo todo poderoso Christof que filma e divulga as imagens da intimidade de seu personagem real por aparelhos de TV, enquanto Truman nada percebe. 

Vivendo sua existência com rede de proteção, Truman, aos poucos, nota que há algo de estranho. Incoerências sutis, constâncias suspeitas, falta de espontaneidade, fatos insólitos, pequenos descuidos dos figurantes e mesmo a falta de habilidade da esposa/atriz (Meryl Burbank, Laura Linney) denunciam a irrealidade.  Truman percebe que está preso em uma “bolha” e tenta dela escapar de todas as maneiras, mas sempre volta a ser nela lançado. Todo o seu drama é televisionado e seguido por um público ávido, que reage como a um personagem fictício, não diferenciando realidade de ilusão. 

O que Peter Weir fez em O Show de Truman foi mostrar o quanto o sistema capitalista se serve dos meios de comunicação, no caso da televisão, e o quanto esta molda a sociedade em benefício do próprio sistema, transformando as pessoas em seres passivos, sem senso crítico, distanciadas de sólidos princípios éticos e morais e, acima de tudo, cegas à ação do que as condiciona.  

Cinema e televisão são veículos intimamente ligados, sendo que a TV se desenvolveu, em grande parte, a partir das técnicas de tratamento de imagem e som, proporcionadas pelas primeiras experiências com rádio e cinema. Estes são três veículos da cultura de massa explorados como meios de propagar informações e ideologias com os propósitos os mais diversos. Embora o cinema tenha garantido uma certa margem de independência, o mesmo não ocorreu, proporcionalmente, com rádio e TV que tornaram-se mais suscetíveis às influências governamentais e da brutal concorrência mercadológica. Compreender isso fica fácil quando se nota o uso feito pelo rádio pelos nazistas (o usaram largamente como meio de convencer o povo alemão da grandeza do partido, mesmo diante das atrocidades cometidas), o uso do cinema como veículo propagador do american way of live (implicitamente, somente o jeito norte-americano de viver é o correto e os EUA é a nação mais importante do mundo, a qual as demais devem ter a honra de se submeter), a relação entre propaganda e mercado (implicitamente, a felicidade pode ser adquirida junto ao próximo produto a ser comprado). São mensagens assimiladas sem reflexão e que se tornam a base para futuras reações cerebrais inconscientes que orientam as ações humanas. 

Para o grande público que segue o cotidiano de Truman, não está em questão se ele é um ser humano com direito ao livre arbítrio, com direito à privacidade, com direito de ir e vir, com direito a relações verdadeiras com pessoas sinceras. Os valores nos quais as pessoas acreditam e pelos quais lutam perdem o sentido diante de um simulacro, a TV, que lhes dita outras regras, buscando beneficiar seus patrocinadores e interesses próprios. Assim, novos valores são adotados de forma maquinal, irrefletida e transformam-se em hábitos que subtituem sentidos caros à humanidade, por simples força do hábito. Em Truman Show chega-se ao ponto de colocar uma vida humana em risco sem que isso sequer seja questionado, ou mesmo percebida a gravidade da situação por parte de um público extasiado. 

O tendão de Aquiles da sociedade atual é justamente a falta de consciência e noção de conseqüências soterradas pela falta de reflexão. É assim que  governos e mercados convencem os homens de que a guerra é necessária, de que o consumismo desenfreado é necessário, de que a coisificação dos homens tomados como objetos é “normal”, de que parecer ser é mais importante do que as essências humanas verdadeiras, de que as relações superficiais e banais constituem a mais louvável forma de vida. 

A falta de reflexão joga a humanidade em um buraco sem fundo sem que os indivíduos sequer percebam, pois estão entorpecidos por um ritmo de vida frenético e por veículos de comunicação manipuladores que lhes dizem como se comportar e o que pensar, enquanto atolam  a todos em enormes volumes de lixo que chamam de “cultura” ou de “entretenimento”. Note o anúncio de produtos dos patrocinadores nas transmissões do Truman Show, na dimensão  da cidade cenográfico que só poderia atingir aquelas proporções ao custo de muito investimento. Dinheiro este que é o preço de cada segundo da vida de Truman, assim como do condicionamento do grande público que deve servir a um sistema nocivo, que de tão predator coloca em risco a própria manutenção da vida no planeta.

O tom sarcástico de Weir chega a ser genial, pois torna leve um tema árduo. Já Jim Carrey, quando deixa as comédias banais de lado e se dedica a papéis sérios mostra o quanto é competente. Interessante interpretar a história a partir de um outro ponto de vista, o religioso. Christof age como um deus onipotente e onipresente, que joga com a vida de sua criatura. A cidade cenográfica é seu paraíso e se Truman quer dele sair para conhecer o mundo real, pode acabar descobrindo que não se está a salvo em lugar algum.

Comentários (3)

Caio Ramalho | segunda-feira, 01 de Outubro de 2012 - 23:19

Se vc apenas mostrou pontos positivos do filme, qual o motivo da nota 8?

Cristian Oliveira Bruno | sexta-feira, 22 de Novembro de 2013 - 14:58

Jim Carrey mostrando todo seu lado dramático nesse excelente filme. Ed Harris também mostra sua presença única. Grande filme.

Aderson Silva | segunda-feira, 26 de Dezembro de 2016 - 01:14

Filme excepcional!! Bela surpresa!! Sempre o evitei por ter aversão a forma de comédia de Jim Carrey, agora o considero um grande ator. Assisti esse filme pra ler um texto sobre ele e me surpreendi.

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