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Críticas

Cineplayers

Implacável sociedade, inesquecível cinema.

9,0
Um carro para próximo a uma esquina. Dele, salta uma mulher e muitas bolsas. O carro avança e se afasta dela, que corre atrás desesperada. Quando consegue alcançá-lo, gesticula bastante e retira mais um pacote do veículo: uma criança. Mulher e criança sobem em um prédio enquanto o carro some do quadro... O carro volta ao quadro e a mulher se despede de outra, deixando a criança e as bolsas com ela. Enquanto isso, o carro volta a parar próximo à mesma esquina inicial enquanto espera a mulher, e essa parada no meio da rua provoca um mini engarrafamento. Uma buzina é acionada para fazê-lo andar. Ele só sai enfim quando a primeira mulher retorna a seu interior, deixando criança e bolsas para trás.

Essa é a primorosa sequência de abertura de Sieranevada, sem diálogos, sem close, com câmera distanciada, apenas os sons de qualquer metrópole a moldá-la. E essa metrópole entende-se como a capital da Romênia, país origem dessa impressionante obra que compõe mais um acerto da carreira (repleta deles) de Cristi Puiu, o nome que explodiu a moderníssima nova onda romena com o implacável A Morte do Senhor Lazarescu na década passada. De lá pra cá, praticamente tudo mudou na forma do mundo olhar para a cinematografia romena, que empilha filmaços ano a ano e vê nascer diversos cineastas impecáveis em sequência. Hoje, após até ganhar uma Palma em Cannes, a Romênia é claramente uma das super potências do cinema mundial. Ver 'Sieranevada' retifica essa afirmação.

O filme pode ser resumido em uma frase: um almoço familiar onde seremos apresentados a um enorme núcleo de parentes dispostos a debater sobre tudo e todos enquanto esperam o padre chegar para uma cerimônia que fará sentido no desenrolar da produção. Parece simples, parece rápido, mas estamos diante de um compêndio sobre a vida em sociedade nos dias de hoje de quase três horas de duração, onde apenas sua meia hora final emperra aqui e ali, sem nunca tirar o brilho de uma narrativa fluida e desconcertante. Possui um roteiro que não deixa pedra sobre pedra a respeito de política, religião, terrorismo, relações humanas, relacionamentos amorosos, drogas, dependência química, cultura geral e etc. Nem os Estúdios Disney são poupados (e talvez remetam a ele os diálogos mais impagáveis do filme). De construção dramática preciosa, os mais de dez personagens em cena o tempo todo são construídos meticulosamente e tem diversas camadas de nuances e significados. Tão raro ver um filme onde absolutamente todos os personagens são bem escritos, diferenciados e postos em prática por elenco e realizador. Fica a ressalva a apenas um grande momento que destoa do resto.

No meio dessa riquíssima fauna humana, salta aos olhos uma característica primordial de Puiu e seu filme. Com a descrição acima, seria fácil enquadrar 'Sieranevada' numa categoria restritiva a atores, quase como um estudo de personagens ou o tão assustador teatro filmado. A resposta de Puiu a isso é uma direção espetacular, conseguindo uma mise en scene nunca menos que muito bem estruturada e pensada, num jogo de revelar e esconder diálogos simplesmente fascinante. A forma como ele posiciona a câmera no corredor do magnífico apartamento é uma solução brilhante em conjunto de cenografia e direção, controlando seu mundo de portas fechadas e embarcando na ironia que propõe e é inerente a sua sociedade, espreitando sempre que possível, aguçando sempre que possível, resultando num jogo cênico irresistível aplicado a um filme que não deixa de ser brilhante mesmo diante de seus mínimos defeitos.

Comentários (1)

Marcos andré Pereira | quarta-feira, 19 de Outubro de 2016 - 13:32

Filme muito bom mesmo, pena que cai muito de nível na meia hora final. E o velhinho come todas é impagável.

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