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Críticas

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O medo devora a alma.

8,0
A trama de O Silêncio do Céu (Era el Cielo, 2016) parte de uma situação traumatizante, que vai repercutir e se desdobrar de muitas formas na vida de um casal. Sentados à mesa na companhia dos dois filhos pequenos durante o jantar, Mario (Leonardo Sbaraglia) e Diana (Carolina Dieckmann) sustentam uma encenação cotidiana de conversas triviais sobre a rotina do dia. O que parece uma cena corriqueira tem o peso de uma história de terror, pois logo na abertura do filme testemunhamos Diana sendo estuprada por dois invasores, enquanto Mario observa de longe toda a violência sem conseguir tomar uma atitude em defesa de sua esposa. Mais tarde, no mesmo dia, os dois estão ali sentados e jantando como se nada tivesse acontecido. Diana não revela a Mario que foi violentada, enquanto Mario não consegue confessar que sabe de tudo. 

O que começa como um thriller investigativo, principalmente a partir do ponto que Mario decide ir atrás dos estupradores, acaba se revelando um trabalho totalmente surpreendente. Não interessa ao diretor Marco Dutra o plot de vingança que estrutura toda a obra, mas sim os mecanismos por trás dessa fachada de filme de gênero. O Silêncio do Céu vai muito além do que parece inicialmente, e deixa seu foco e atenção recaírem sob a enigmática relação entre Mario e Diana. O estupro em si parece apenas um desencadeador do caos que estava há muito tempo latente na relação dos dois, e traz à tona questões que até então eram cuidadosamente evitadas pelo casal. Muito sagaz, o diretor explora a perspectiva de cada um dos dois e a partir disso o filme se multiplica em algo muito mais complexo do que se poderia imaginar. 

O Silêncio do Céu envolve dois temas principais: a comunicação e o medo. Diana não conta para Mario que foi estuprada, e o silêncio dela é torturante para o marido que sabe pelo que sua esposa passou. Ele não consegue entender as motivações dela para esconder a verdade, e ao mesmo tempo não consegue segurar consigo a informação. A narração em off de Mario nos revela que o personagem sofre desde a infância com uma série de fobias e paranoias – tem medo de velocidade, escuro, doenças, morte, altura, aviões, violência, humilhação, desordem. Ao longo dos anos foi aprendendo a construir uma barreira, ou um personagem, que ocultasse todos os seus medos e transmitisse uma ideia de normalidade, confiança. Diana é a única que consegue enxergá-lo além do disfarce, no entanto a própria também parece presa a uma personagem, e a dor de Mario é não conseguir desvendar os sentimentos da própria esposa. 

Com base nessas informações, Dutra constrói um filme sobre a farsa, dentro de muitos níveis. Seus personagens estão todos presos a máscaras e farsas enquanto o próprio filme se esconde por entre gêneros para discutir sobre os ruídos na comunicação em uma relação a dois e como o acúmulo desses segredos pode implodir em algo catastrófico ao longo dos anos. Quanto mais informações o diretor vai jogando, mais uma máscara acaba caindo, mais uma situação é descortinada, uma nova perspectiva é revelada, contudo Mario e Diana continuam a guardar o que sabem para si e isso aos poucos vai se transformando numa bomba-relógio que promete explodir a qualquer momento. Para criar a tensão em volta dessa dinâmica, Dutra aposta numa ambientação sufocante. A Montevidéu filmada por ele é apática, cinzenta, opressora e reforça a dissintonia de línguas, países e origens do casal. Os muitos planos abertos do início vão aos poucos dando lugar aos planos fechados conforme a história vai se aprofundando.  Os sons incidentais, do extracampo, são potencializados de tal forma que fica até mesmo difícil ouvir por vezes os diálogos entre os dois, como se tudo ao redor conspirasse para que Mario e Diana não consigam se entender ou se comunicar (cabe aqui uma observação mais que positiva sobre os desempenhos memoráveis de Sbaraglia e Dieckmann). A narração em off adotada na narrativa poderia ser uma armadilha, mas é usada de forma tão inteligente que se torna essencial para que consigamos entender pelo menos um pouco sobre os sentimentos de cada um, visto que a comunicação verbal entre eles é escassa. 

Depois dos ótimos Trabalhar Cansa (idem, 2011) e Quando Eu Era Vivo (idem, 2014), Marco Dutra volta a brincar com fantasmas, dessa vez sem recorrer ao sobrenatural, mas sim através de muitas insinuações, tensões e estranhamentos na atmosfera dúbia e incerta. Em imagens ele traduz o medo consumidor de Mario, as dores e segredos de Diana e o horror do silêncio em meio ao barulho. A violência que acomete o casal é brutal, mas o que realmente pesa ali é o todo em volta dela, envolto num silêncio tão celeste quanto sepulcral.  

Comentários (2)

Augusto Barbosa | segunda-feira, 03 de Outubro de 2016 - 20:42

Ótimo texto para um grande filme. Um filão parece estar se formando no Cinema nacional contemporâneo em torno do terror lastreado em questões cotidianas, sejam sociais ou familiares. Dutra, claro, é um dos expoentes, e, de longe, essa é a face mais atraente do que vem sendo produzido por aqui, pelo menos pra mim.

Que se diga: afora certos planos à luz do dia que ficaram meio esquisitos, a fotografia desse aqui, especialmente nos momentos noturnos, é digna de aplausos, seu uso estilizado das sombras (assim como da trilha) foi certeiro demais na potencialização dos medos e tensões abordados.

Marcelo Queiroz | sexta-feira, 27 de Janeiro de 2017 - 02:25

Bom filme. Dutra explora, conscientemente, essa que vem sendo a tendência da filmografia de muitos diretores em território nacional, os temores e inseguranças do homem, acometido pelos traumas da vida e, até mesmo, pelo irromper banal de um som que o tira do sério. As pessoas vivem, na contemporaneidade, cercadas de fobias e, nada melhor que a Arte na tela, para explorar isso.

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