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Sombra Lunar

(In The Shadow of the Moon, 2019)
5,3
Média
25 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Arremedo de tudo: crônicas, ideias, cinema

4,0

Sombra Lunar já começa com a façanha incrível de tirar o público da poltrona na primeira cena: pelo vidro temperado do andar alto de um prédio comercial, uma bandeira alternativa dos Estados Unidos da América cai tremulando queimada enquanto o mundo desaba lá fora. O motivo dessa cena se entranha na cabeça do espectador que se coloca ativamente nos filmes. “Por que aquela bandeira tem tão poucas estrelas?” “Os EUA se separaram, ou teriam os estados americanos se unificado?” “Qual o motivo desse apocalipse?” “Por quê???” Porquês.

O roteiro de Gregory Weidman e Geoffrey Tock (dupla estreante em longas-metragens com trajetória questionável na televisão) é feliz em seu plano: deixar essas pontas soltas em um prólogo breve de lado e construir minuciosamente toda a história que dará sentido à trama. E esse primeiro ato é ótimo. Pessoas distintas morrem misteriosamente em uma Filadélfia chuvosa, no fim da década de 80, mergulhada em sombras. O diretor Jim Mickle impõe seu entusiasmo pelo cinema de suspense em boas cenas de ação, montando habilidosamente o texto de Weidman e Tock. 

Com uma alternância bacana entre o split-screen formal e planejado com mise-en-scène, o cineasta norte-americano e o fotógrafo David Lanzenberg expressam com destreza a vida de Thomas Lockhart (Boyd Holbrook), um caos tal como o da TV porque dividida entre duas paixões: a esposa grávida, Jean (Rachel Keller), e a carreira policial. O patrulheiro tem o sonho de se tornar detetive, um dom inequívoco, haja vista a facilidade que tem de observar e seguir pistas — ainda melhor que de seu cunhado, o Detetive Holt (Michael C. Hall), típico profissional exemplar que mais se destaca por cumprir ordens e não correr riscos. Outro bom elemento apresentado nesse início é a química entre o protagonista e o parceiro Maddox (Bokeem Woodbine), ecoando o longo histórico de duplas policiais interraciais de sucesso do cinema norte-americano, das comédias Máquina Mortífera, 48 Horas e A Hora do Rush ao suspense Seven - Os Sete Crimes Capitais. Para ficar perfeito, bastaria surgir um serial killer ameaçador e uma tragédia real para afetar o trio principal, e assim acontece. Uma pena que essa promessa se perca e não se concretize.

Em seu primeiro salto de 9 anos, quando os crimes voltam a ocorrer em série, Sombra Lunar ainda contém certa inspiração. Os efeitos do trauma sofrido por Lockhart, os sentimentos conflitantes que o aniversário de sua filha despertam em si — com toda razão —  e o esforço do filme em contextualizar a Filadélfia de 2006 (encantada pelo talento de Allen Iverson) são breves sopros de engenho, logo se esvaem. O primeiro equívoco é atroz: colocar militantes do movimento negro no mesmo balaio de supremacistas brancos. A obra manipula o olhar onisciente do público, que acompanha a ação do policial branco e sabe que a criminosa negra morre acidentalmente. Assim, o roteiro de Weidman e Tock induz no espectador uma antipatia por ativistas que protestam contra a morte de pessoas negras, haja vista o fato de eles defenderam uma assassina em série sem conhecer as circunstâncias que a levam a óbito. E insiste nessa desonestidade intelectual, abrindo um expediente perigoso em tempos de polarização, radicalismo e avanço da extrema-direita no mundo. O que, de quebra, compromete seu estofo dramático.

Desse momento em diante, Sombra Lunar desaba em todos os aspectos narrativos. Surpreendentemente, a vilania do longa-metragem vai sendo atribuída à ação de globalistas revisionistas, e teorias da conspiração e críticas sociais são atiradas no filme sem jamais adquirir potência ou sentido. O roteiro é feito de retalhos de influências cinematográficas: a maldição cíclica de It - A Coisa, a viagem no tempo de Exterminador do Futuro, a busca de pistas dos filmes investigativos (uns pares de cenas diurnas até lembram Zodíaco) e uma triste coincidência visual e temática com o infinitamente superior Nós. O desacerto se deve à má articulação dessas “ideias”, que se manifestam sem a menor coesão em termos de fotografia, decupagem, trilha sonora, enfim, enquanto fusão de gêneros.

A trama de Sombra Lunar ainda adota uma estrutura episódica que se equivoca para onde se olha. A passagem de tempo é marcada de forma mambembe, em trajes e pelos no rosto para envelhecer os personagens, e edição tão desleixada que o filme parece mais longo do que de fato é. Lockhart involui como um surrado arquétipo do pária iluminista que enlouquece em sua obstinação pela verdade. A simples caracterização de Sarah Dugdale como uma jovem de 18 anos é espantosamente inadequada e o papel que lhe cabe, pior ainda. O melodrama forjado entre a filha que amadurece por causa do pai irresponsável, e o julga, enquanto ele próprio é construído como um genitor abjeto, que chafurda em autopiedade, extrapola qualquer nível de superficialidade psicológica. Pobres Boyd Holbrook e Michael C. Hall (cujo personagem é mais que esquecível, uma excrescência caricata, absolutamente dispensável), que ensaiam na dramática cena final do primeiro bloco a contribuição que poderiam dar como os atores competentes que são.

Ao fim de seu desfecho bobo, esticado para tentar fechar aquelas pontas soltas do prólogo promissor e parecer plausível (sem sucesso), Sombra Lunar materializa um indício desalentador: de que a Netflix reproduz vícios ruins de Hollywood, escalando artistas competentes como Jim Mickle (do bom neo-noir Julho Sangrento) para dirigir filmes de encomenda e atender a uma demanda, a despeito de seu potencial para criar algo próprio e de excelência. Além dessa triste constatação, fica a seguinte dúvida: até quando a quantidade renderá para a gigante do streaming em detrimento da qualidade? Que a iluminação artística chegue antes da conta negativa.

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