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Críticas

Cineplayers

Um excelente filme para analisar em detalhes.

8,5

O cinema conta com uma galeria imensa de personagens psicologicamente perturbados. São psicóticos, esquizofrênicos, bipolares, psicopatas, serial killers. Desenvolvê-los e apresentar suas histórias em linguagem cinematográfica é sempre um desafio para todos os envolvidos em uma produção, especialmente para aqueles que desejam acrescentar algo de novo. Os resultados freqüentemente são satisfatórios ou mesmo surpreendentes, como acontece com Norman Bates em Psicose, John Doe em Seven, Carl Stargher em A Cela, Hayley Stack em Menina Má.Com, ou mesmo com Hannibal Lecter, personagem brilhantemente imortalizado por Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes, Dragão Vermelho e Hannibal.

Considerando que Um Sonho Dentro de Um Sonho (Slipstream, originalmente)  foi roteirizado, dirigido e estrelado pelo próprio Hopkins, um profissional de extrema qualidade que de quebra ainda envolveu sua atual esposa, a atriz e produtora colombiana Stella Arroyave, no projeto, é de se esperar algo que fuja do lugar comum. Quanto a isso a história de Felix Bonhoeffer  não deixa ninguém frustrado. Ele é um roteirista de cinema que se torna incapaz de distinguir entre realidade e ficção. Não é violento ou perigoso, não se coloca a praticar o mal, ele apenas adoece a partir de um processo conhecido por todos os escritores: a criação e caracterização de personagens. Felix embarca com seus entes imaginários em mundos de fantasia, intimamente, dia após dia, e perde o caminho de volta. 

Enquanto o comum é apresentar personagens psicologicamente desequilibrados a partir de pontos de vistas exteriores a eles, Hopkins se aventura a fazer o contrário, ou seja, oferece ao público (na maior parte do tempo) a percepção que o próprio personagem tem de sua mente, o que ele vê, o que acontece em seu interior. Como se não bastasse, opta por fazer isso em narrativa não-linear. É uma ousadia, pois combinar ausência de lógica e  não-linearidade é caminhar à beira de um precipício. Mas também é verdade que aqueles que se dispõem a conhecer uma mente doentia não podem esperar lógica ou ordem e é nisso que o enredo se justifica. 

À primeira impressão, Um Sonho Dentro de Um Sonho parece uma colagem mal feita de fragmentos sem sentido próprio e sem relação entre si.  Os primeiros trinta minutos, principalmente, são extremamente confusos, os acontecimentos se contradizem e se estilhaçam o tempo todo, as cenas são surreias, os diálogos são propositalmente absurdos. Nada se explica, tudo se complica e o problema, se é que se pode dizer que é um problema, é que esses minutos parecem longos demais.

Aos poucos se começa a notar os sinais de irrealidade do contexto. Cenas e vozes sobrepostas, cantigas de ninar, interpretações exageradamente histéricas, automóveis que mudam de cor em uma mesma cena, alternância entre cenas coloridas e em preto e branco, cortes rápidos e falas arrastadas, entre outros recursos, dão ao filme um ar de pesadelo que se releva pela confusão. É o sonho ao qual o título se refere. Nele somos lançados de cara, sem aviso prévio. E em certo momento se percebe que há um pouco de O Sexto Sentido, pois a cenas não representam o que se vê e, assim, o espectador também entra no jogo, pois se impõe a percepção de que não se está assistindo e sim sonhando assistir. 

A melhor forma de enfrentar Um Sonho Dentro de um Sonho é mergulhar nele despreocupadamente. Esquecendo que se deve encontrar algum sentido, se pode apreciar e refletir sobre o mar de citações literária (Edgar Allan Poe), histórico-jornalísticas (cenas da Segunda Guerra Mundial, imagens de Hitler, da bomba atômica, de Hiroshima) e cinematográficas (Vampiro de Almas, Gata em Teto de Zinco Quente, Richard Burton, James Dean, Dolly Parton, gangsters e índios). São fragmentos da memória de Felix Bonhoeffer, ao mesmo tempo uma homenagem de Hopkins a Burton (é conhecida sua admiração por ele) e uma alusão ao que marcou sua própria história de vida. 

Um Sonho Dentro de um Sonho guarda algum parentesco com o resultado metalingüístico conseguido por Gus Van Sant em Elefante (as mesmas cenas filmadas a partir de ângulos diversos). É um exercício de edição dentro de uma obra narrativa, o filme discutindo a si mesmo. Também há uma tentativa de humor sutil, ao melhor estilo Pulp Fiction, há ironia nos gestos, no emprego de caracterizações exageradas e clichês (principalmente na interpretação de Christian Slater) e, ainda, na própria situação de Hopkins diante de seu filme. Ele é um roteirista contando a história de um roteirista, um cineasta que nos apresenta a “realidade” de um set de filmagem, ou seja, ele brinca consigo mesmo enquanto não deixa de imprimir algo de filosófico em sua obra, semelhante às realidades paralelas de Matrix e rementendo a Emanuel Kant e sua teorias, no que elas dizem respeito à percepções e conceitos, sem esquecer Jung e seus arquétipos.

Em síntese, este é um filme excelente para se assistir com amigos e depois conversar sobre cada passagem por horas e horas, descobrir detalhes e propor sentidos. Embora o resultado final deixe mais em evidência fatores técnicos, impedindo que o público mergulhe num mar de emoções (o que não seria inadequado em um filme sobre estados da mente), também não o impede de ser capturado pelas possibilidades de transcendência. Afinal, há quem diga que a vida é sonho.

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