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Summer of Soul (...ou, Quando A Revolução Não Pode Ser Televisionada)

(Summer of Soul (...Or, When the Revolution Could Not Be Televised), 2021)
8,1
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Críticas

Cineplayers

“What’s up in the moon?”

8,5

“Um desperdício de dinheiro”, “Vamos fazer algo sobre a pobreza agora”, ou “os pretos querem ir para a África, o branco vai à lua, eu vou ficar no Harlem com os porto-riquenhos, e aproveitar a festa”. Essas foram as reações de alguns dos espectadores do Festival de Cultura do Harlem de 1969 ao serem questionados sobre a chegada do homem à Lua, no mesmo dia do evento. Naquele instante, daquele dia, o tradicional bairro nova-iorquino recusava dividir qualquer protagonismo.

O Harlem sempre foi uma região marginalizada, tanto geograficamente como socialmente, famosa por abrigar um grande número de hispano americanos e negros, também herdou a fama de suja, violenta e desestruturada. Muito pelo esquecimento total de sua existência – dentro de seu próprio caldeirão cultural – os artistas locais tinham liberdade artística de criação , não à toa, foi berço de importantes movimentos, tais como a “Harlem Renaissance, e do bem esquecido (mas não menos importante) Afrocriollo entre os anos 20 e 40

Na mesma maré, nos já mais fervidos anos 60, Tony Lawrence produzia eventos de todos os tipos no bairro, o Festival de Cultura do Harlem foi certamente o mais importante deles. Tudo começou bem embrionário em 1967, a ideia era unir elementos culturais de interesse mútuo entre a comunidade porto-riquenha e afro-americana; dois anos depois, o evento já contava com certa notabilidade: patrocínios, seis datas (29/06 ao 24/08), uma grande instalação no Mount Morris Park, e um line-up  de peso com artistas do quilate de Nina Simone e B.B King.

Não é de se espantar que não seria nem mesmo a expedição espacial multimilionária da NASA pelo espaço, que iria diminuir o tamanho do festival, ao contrário. A estratégia de Summer Of Soul (...Ou quando a revolução não pode ser televisionada) (Summer of Soul (...Or, When the Revolution Could Not Be Televised), 2021) está justamente em elucidar o momento histórico que aquele espaço, aquelas pessoas e, fundamentalmente, aquele evento estava vivendo.

Questlove estreante na direção cinematográfica, originalmente baterista, é um artista interessantíssimo, não só pela sua virtuose com as baquetas- reconhecida inclusive no premiadíssimo Soul (Soul, 2020) – mas muito também pelo seu trabalho como produtor musical e DJ, tendo trabalhado com figuras como Al Green, Erykah Badu J Dilla, Amy Winehouse, Common e Jay-Z. Multifacetado, e reconhecido pesquisador musical, toma as rédeas de todo o material e deixa claro ao espectador o tamanho e a relevância do evento para a cultura americana. Pretendendo, assim, transformar o esquecimento daquelas tardes, numa doce lembrança, que só poderia vir através de seu meio original: a música.

Os anos 60 são os primeiros passos para um empoderamento mais organizado das comunidades violentadas historicamente nos E.U.A, vemos a ascensão de Martin Luther King, Malcom X, a estruturação do Partido Black Panther, artistas e personalidades esportivas engajadas numa luta por direitos iguais e, na mesma medida, percebe-se também o tamanho do incomodo dessa ascensão ao conservadorismo americano. Os seguidos assassinatos destas personalidades citadas, e do presidente JFK, deixavam um recado claro aos que pensavam num país menos branco. Não precisava olhar muito para trás para enxergar os campos de algodão, e olhar para o futuro com esperança de justiça que fazia dos indignados mais um alvo.

Apesar de ser um artista eminentemente musical, o roteiro de Questlove toma caminhos narrativos cinematográficos inusitados, diferente de boa parte dos filmes sobre espetáculos musicais, não há uma preocupação estética em esboçar uma linha temporal precisa. Um espectador mais desatento pode até ficar com a impressão inicial que tudo aquilo acontecera, de forma especial, apenas numa tarde de verão.

Escolha eficaz, muito bem trabalhada pela montagem de Johua L. Pearson (Keith Richards: Under the Influence, 2015; What Happened, Miss Simone?, 2015), a decupagem final de todo o material recolhido, além dos atos musicais, seleciona imagens  de acontecimentos históricos , que permitem ao espectador uma boa noção do que de fato foi, por exemplo, a morte de Luther King, há apenas um ano atrás daquele verão; algumas fotos de arquivo, elucidam, por exemplo, a imagem comercial que algum dos artistas carregavam até chegar ao palco, menção especial ao parêntese feito sobre Stevie Wonder; entrevistas atuais tanto com o público, como com os músicos, que quase sempre servem para localizar o espectador diante do tamanho que tinham, e do que aquele evento no Harlem significou em suas carreiras, além do efeito causado pelas suas presenças ao público. Ou seja, era enorme ver os principais artistas do momento apresentando-se grátis ao lado de casa, com churrasco e cerveja gelada servidos em barriquinhas.

A potência desses três elementos que cobrem a narrativa, separa a obra de Questlove, do que poderia ser “apenas” uma remasterização de um concerto, ou mesmo do gênero musical, e o levam direto para o gênero documental. Isto é, um olhar que conduz e escolhe os planos, uma mão consciente do quer mostrar, e omitir. Não é o filme oficial sem sal do evento para a televisão, é uma obra que pretende reproduzir a carga emotiva daqueles dias no bairro, e efetivamente consegue.

 As fotos de plano aberto, onde se vê a multidão aproveitando uma pacífica tarde com boa música ganham uma força, que talvez elas por si só não alcançassem. Ao ver as crianças dançando, o espectador especula sobre o efeito que aquele dia poderia haver causado na mente daqueles indivíduos. Era absolutamente inimaginável para uma comunidade totalmente marginalizada viver um dia como aquele. Entretanto, apesar do sentido coletivo que há embutido em toda a película, a montagem permite-nos entender que por trás de cada uma daquelas pessoas que estavam ali, sejam elas artistas, jornalistas, políticos, seguranças, e claro, os espectadores, havia uma história, um pensamento, uma vontade, e imensa fome de viver novos tempos, de rostos mais próximos ao seu espelho.

Esta força motora em movimento estruturada por esse tridente narrativo destacado, potencializam a quarta camada narrativa, e de mais minutagens da obra: as próprias imagens de arquivo do evento, a música em movimento, os grandes artistas, bem estruturados narrativamente, com suas devidas importâncias, em performances memoráveis.

Questlove pretende, segundo a sua ótica, reproduzir a carga emotiva daqueles dias de verão deixando que a música fale, mais que qualquer outro elemento,  ainda que tenha todo o aparato técnico do gênero documental ao seu lado, ao final, mostram-se como acessórios para dar o devido do tamanho do desconhecimento sobre aquelas tardes no Harlem. Nas performances musicais não há truques, vemos minutos e minutos dos grandes artistas, a recepção do público, e, claro, tudo aquilo ganha muito mais sentido com todo o arcabouço montado.

Não há nenhum Harlem na lua, nem mesmo há som na lua, as imagens da bandeira americana tremulando em território espacial, mostram-se vazias. Por outro lado, reviver a experiência de um dos eventos culturais mais importantes da nossa história é prova total de que a revolução existiu, existe, resiste, mas nunca será televisionada.

 Filme linkado no especial Cinemas Negros.

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