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Críticas

Cineplayers

Jogos de memória: a superposição do tempo no cinema de Miguel Gomes.

9,5

Em seu prólogo Miguel Gomes assume o tom do seu novo filme, Tabu (idem, 2012): uma fábula poética. No curto trecho, vemos um explorador que viaja por terras distantes mas não consegue fugir das tormentas do próprio coração. Síntese da história de Aurora, que nesse trecho inicial aparece representada como a moça que vaga como um espírito acompanhada por seu crocodilo melancólico.

Gomes divide o restante da sua narrativa em duas partes, na primeira estamos na Lisboa contemporânea, próximos a um fim de ano, que se arrasta nas rotinas solitárias de Aurora (agora já uma senhora), sua empregada cabo-verdiana, Santa, e a vizinha Pilar. Entre sonhos mirabolantes, surtos de paranóia, jogatina compulsiva, Aurora está com o coração intranquilo – como quem pressente o fim, mas se agarra as pequenas migalhas de existência que lhe cabem (nem que seja para implicar com a impertinente Santa). Pilar vê-se cada vez mais enredada pela loucura da amiga e, diante de seu pedido em uma cama de hospital, não hesita em correr atrás de Ventura, que se revelará o grande amor da juventude de Aurora e a quem essa nunca reviu.

É pela narração de Ventura que entramos na segunda parte do filme, não mais em Lisboa, mas na África. Não mais nos dias atuais, mas um imenso flashback que se passa na juventude de Aurora e Ventura. E, sobretudo, não mais em uma narrativa direta, mas pela voz off de Ventura, por seu filtro indireto e subjetivo no desenrolar da trama. Nesse ponto, o filme ganha um tom de doce ironia (quase cínica), contra a melancolia irremediável que envolvia a primeira parte da história. É pela voz de seu amante que recompomos o romance adúltero de Aurora aos pés da monte Tabu.

Mais do que com registros narrativos diversos: a fábula poética, a encenação direta e o flashback, é com a memória que Miguel Gomes quer lidar. Nesse jogo de memória, é o tempo do filme (e, nesse caso, da vida de Aurora) que sofre uma superposição. Ao final da segunda parte, não é apenas a vida da personagem que se explica, mas o filme ganha uma nova significação – prólogo e a primeira metade do filme dobram de sentido.

Assim, temos o presente (a primeira parte do filme) que está em constante atualização no passado (a segunda) – atualização materializada principalmente pela voz de Ventura, que comanda a ação. Comando que não se dá sem conflito, de fabular o trágico com o cinismo de quem sobreviveu a ele. O cinema de Miguel Gomes arma-se, dessa forma, como uma máquina do tempo, na qual não é possível alterar a cadeia de ação e reação dos acontecimentos, mas transformar melancolia arrastada em autofabulação apaixonada.

Comentários (5)

Rodrigo Torres | sábado, 29 de Junho de 2013 - 15:36

No Festival do Rio, perdi pré-estreia, perdi ingresso, mas desse fim de semana não passa.

Gustavo Hackaq | domingo, 30 de Junho de 2013 - 21:15

Acho esse filme uma gracinha, mas esses notões me assustam.

Diego Bauer | quarta-feira, 14 de Agosto de 2013 - 13:02

Devo ter visto um filme diferente do que viu Daniel, Heitor, Rodrigo, Bernardo e Patrick. Um filme com uma bonita história, contado de maneira inteligente e sensível, mas que nem de longe é tão brilhante, arrebatador e genial como dizem. Bom filme.

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