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Críticas

Cineplayers

A busca por nós mesmos no outro.

7,0
Do concreto ao imaginário, de uma fábrica responsável por pedras em Singapura até uma lan-house companheira de trabalhadores insones, existe um caminho construído na narrativa de Uma Terra Imaginada que liga pontos desconexos, como a estabelecer um padrão que saia do território das certezas e adentre o das possibilidades infinitas. É desse lugar que chega o novo filme de Siew Hua Ye, diretor local que após dois longas chega ao ponto mais alto da carreira com a vitória do Leopardo de Ouro em Locarno. Uma aposta ousada do júri assim como o próprio filme, que flerta abertamente com o policial noir e cria uma zona abstrata de linguagem cinematográfica que o situa num lugar parecido com o de Carvão Negro, vencedor do Urso de Ouro em Berlim faz 4 anos. Ambos injetam gênero para expandir o lugar de observação do exótico na cultura oriental de cinema.

Um policial investiga o desaparecimento de um operário imigrante. Para tal, invade a existência dele e, enquanto vasculha os detalhes de sua rotina, começa a se tornar parte integrante da mesma. No local de trabalho, no quarto onde dorme, entre os jogos eletrônicos que o salvam da inércia até a insônia provoca, na companhia de sua musa, a intensidade desse mergulho vai se expandindo até contaminar o detetive, e logo os mesmos passos estarão sendo dados. Ao redor do neon e do onírico, a discussão sobre o despertencimento vai ganhando não apenas espaço como relevância narrativa, criando camadas gradativas de liberdade estética para um longa que começa naturalista e, sem que possamos sentir, adquire uma linguagem contemporânea, agregando material gráfico eletrônico a situações elípticas que remetem ao caráter imaginário que o próprio título já induz.

É o cenário que constrói aquela história. O diretor Ye nos transporta para aquele ambiente e a partir dele conta a realidade de seus protagonistas, homens que não se encontram mas estão intimamente ligados, a princípio por uma busca até desembocar em entendimento pleno do outro e da conexão pura com um semelhante. É através da conexão que essa empatia nasce de um com o outro, e o filme implicitamente passa a narrar esse processo de construção empática, evidenciando essa ausência moderna. Através dos flashbacks, essa fagulha vai sendo plantada também no espectador, que compreende aqueles dois homens como existências afins que a distância uniu. Prova disso é a insônia adquirida pelo detetive, que era uma condição do desaparecido e acaba por migrar de um a outro. É como se o diretor quisesse também construir os elos emocionais entre seus personagens para depois então jogá-los no redemoinho de pinceladas fantásticas.

A partir do terceiro ato, quando o mistério parece se encaminhar a um desfecho, o filme então se transmuta e seu realismo dá lugar a uma aura de desconstrução do real para abrigar o devaneio estético, que expande o protagonista presente para fora da sua racionalidade. O filme ganha amplidão narrativa e adquire novos tons, que ao mesmo tempo só reforçam seu caráter inicial de encarar a realidade. O diretor demonstra então onde estava submersa sua autoralidade, que vem à tona para potencializar a obra. Um foco de resistência da memória e do afeto através do resgate, que pode ser acessado ao simples sinal de desvelo do outro na nossa direção. A produção promove em tempos de afastamento uma ode ao encontro, a busca pelo outro e ao ato recompensador de descobrir alguém, mesmo que esse alguém não esteja mais lá. Não é tarde para sacudir um filme que parecia adormecido, na expectativa do choque.

Filme visto na Mostra de Cinema de São Paulo

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