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Críticas

Cineplayers

Cinema de gente grande.

8,0
Independente de esta ser sua estreia numa cadeira de direção, não é de hoje que Taylor Sheridan tem chamado as atenção dos holofotes em Hollywood no que concerne a narrar histórias que carregam algum apelo político, social ou simplesmente humano. Apesar de seu popular personagem na série Sons of Anarchy, foram nos roteiros do contundente Sicário - Terra de Ninguém e do desolador A Qualquer Custo (que o levou a uma indicação ao Oscar) que Sheridan começou a ser conhecido como um roteirista de mão cheia, o que lhe certamente lhe conferiu a liberdade para que Terra Selvagem fosse realizado. E é importante ressaltar a palavra “liberdade” aqui, pois em tempos de um cinema politicamente correto em meio a um público cada vez mais sensível para certas pautas, Terra Selvagem é o tipo de filme onde é notável o esforço do autor para o chamado público médio, seja pelo incômodo da narrativa ou por cenas inevitavelmente pesadas.

Mas independente de como possa ser interpretado (e há riscos de ele ser visto de forma errônea por uma parte do público), o filme de Sheridan é uma obra de posicionamentos, discursiva, que “toma as dores” de uma realidade crua, seca, que começamos a conhecer pelos olhos de Cory Lambert (Jeremy Renner, indicado ao Oscar por Guerra ao Terror e Atração Perigosa), que vive numa minuscula comunidade dos EUA habitada em sua maioria por descendentes de indígenas. É lá que, durante uma caça a um animal que vem dizimando o gado local (um pequeno plot oficial que faz paralelo com a “terra selvagem” do título), ele se depara com o corpo sem vida de uma jovem no meio da neve. Ao convocarem o FBI para cuidar do caso, os habitantes recebem a agente Jane Banner (Elizabeth Olsen, de Martha Marcy May Marlene), perdida e recebida com certa hostilidade, mas decidida a dar cabo do caso com o auxílio de Cory, que já carrega seus próprios traumas por si só.

Evitando os caminhos que poderiam transformar seu filme em um mero thriller investigativo, o que mais interessa ao script de Sheridan é desnudar o trauma enraizado de uma parte dos EUA que, conforme nos é explicitado em certo momento (mais por questões de extremo didatismo, uma vez que a mensagem é perfeitamente clareada ao longo do filme), corresponde a estatísticas não contabilizadas em meio à porcentagem de homicídios na América, e o que nos é explicitado é essa parte do país esquecida em meio a uma nevasca opressora, nada convidativa, e que debaixo disto guarda seu próprio descontentamento com o mundo exterior.

E neste caminho, Terra Selvagem vai se desnudando como um estudo dolorosamente humano e que abraça temáticas extremamente universais como justiça, vingança, violência e opressão social - afinal, de que lado está a lei? Natalie (Kelsey Asbille), a garota encontrada morta, é a que abre o filme com sua figura correndo em meio a nevasca forte e fria, como que fugindo de alguém ou de alguma coisa, a imagem não nos mostra. E apesar das marcas de agressão e evidências de estupro, a causa da morte acaba sendo vinculada às condições climáticas da terra, e é através deste ponto de balanceio que Terra Selvagem é conduzido por um tom de dubiedade, carregado por personagens que, em seu íntimo, não trazem respostas fáceis sobre suas motivações mais íntimas e pessoais.

Confiando no papel do silêncio extremo quebrado apenas pelo som das ventanias que carregam a neve, grande parte dos diálogos escritos por Sheridan estão ali somente quando se fazem necessários, seja para explicarem termos técnicos da investigação ou para termos um conhecimento maior sobre o que aflige intimamente cada personagem. Diante dessa economia, em Terra Selvagem há muitas trocas de olhares e respirações pesadas que buscam transmitir o que seria banalmente exemplificado em diálogos, como a cena em que Jane chega na casa dos pais de Natalie. Essa sintonia obrigatória entre o elenco é primordial para que o público se sinta devidamente envolvido com aqueles rostos, o que não apenas acentua a força e tensão da história, como nos permite torcer e criar empatia com os personagens, e aqui é admirável notar o entrosamento entre os protagonistas de Renner e Olsen, despidos da roupagem de Gavião Arqueiro e Feiticeira Escarlate nos filmes da Marvel, e não há como não depositarmos toda a confiança e esperança por respostas neles dois. 

E mais ainda, Sheridan é corajoso (ou prepotente, dependerá da leitura de cada um) ao assumir um posicionamento discursivo tão decidido e igualmente questionável que, ao final da projeção, será difícil para o público abandonar a sala de projeção com mil questões e indagações pipocando na mente, seja pela validade da vingança pessoal (o tão famoso olho-por-olho, e em tempos de Donald Trump, é natural que tal questão surja), das medidas entre os papéis masculinos e femininos (os homens são claramente carregados por sentimentos que remetem diretamente a pouca confiança na figura feminina e a delicadeza do típico ego masculino), e até mesmo sobre o ponto de virada de Terra Selvagem, um flashback que poderá facilmente incomodar e afastar uma parte dos espectadores.

Mas em tempos de um cinema cada vez mais idealizado dentro de bolhas, Terra Selvagem é a prova de que ainda há espaço para instigar o questionamento sob o viver social, as leis que regem cada ponto da nossa convivência, e os pesos e medidas que afetam aqueles que são menos valorizados que outros. E por incrível que pareça, mesmo após tanta dor, Sheridan encerra inteligentemente seu filme com um vislumbre de esperança no fim do túnel. É cinema de gente grande.

Comentários (1)

Tiago Cavalheiro | terça-feira, 13 de Fevereiro de 2018 - 16:49

Grande atuação de Jeremy Renner! Fotografia e roteiro primorosos. Ótimo texto Rafael.

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