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Críticas

Cineplayers

O hard bem soft.

3,5

Sonhos. Ensaios. Shows. Turnês. Drogas. Brigas. Declínio. Contar a história de uma banda sem obedecer a essa sequência é quase o mesmo que falsificá-la, e por isso cinebiografias podem ser tão interessantes, já que é essencialmente da ilusão e não da preservação dos fatos que o cinema se ocupa. Se o objeto do filme segue um padrão, é natural concluir que aumenta a responsabilidade do diretor em dar forma a esse conteúdo.

A italiana Floria Sigismondi era diretora de videoclipes até pouco tempo atrás, quando resolveu adaptar a autobiografia de Cherie Currie. Escreveu o roteiro, batalhou as licenças e fez questão de dirigir ela mesma a história das The Runaways, banda composta apenas por garotas que assaltou o mundo na metade da década de 70. O resultado, porém, passa longe do esperado para um filme que só nasceu na base da vontade e da insistência de uma pessoa.

Os problemas são muitos, mas partem todos de um só: The Runaways - Garotas do Rock (The Runaways, 2010) é limpo demais pra um filme de rock’n’roll. Neste aspecto, até a presença dos nomes de Kristen Stewart e principalmente Dakota Fanning exerce uma influência negativa, visto que toda a atmosfera podre dos anos 70 parece rebater no filtro de um mundo mágico de vampiros adolescentes onde até ontem a vocalista das The Runaways era apenas a garotinha de A Menina e o Porquinho, universo onde coisas triviais como nudez e seringas simplesmente não foram inventadas. A comoção que um simples beijo entre elas tem causado já é algo sensacional.

O espírito do punk e do hard rock acaba chegando aos ouvidos com a maciez de um MTV unplugged. Os vícios provenientes da linguagem de videoclipe de Sigismondi — por serem compostos exatamente de um processo que pretendia comprimir a energia original de um show para entregá-la suave nas casas de família sob a embalagem de um programa vespertino — dissolvem a imundície orgânica da juventude da época em uma porção de cores plastificadas e uma iluminação de comercial de refrigerante.

Mas ok, assumamos por um instante que fosse objetivo evitar essa sujeira setentista pra encontrar através de uma óptica feminina um rastro de ternura escondido nos dramas sempre atemporais da passagem pra vida adulta — o que deixa tudo um pouco pior. Não há um pingo de sensibilidade autêntica nos problemas retratados por Sigismondi, seja porque a história de Cherie Currie é um esteriótipo em si mesmo, seja porque a diretora italiana só sabe captar imagens tecnicamente úteis. O pai bêbado, a mãe indiferente, a metáfora tosca da primeira cena... Tudo produto de quem sabe que não é uma autora e precisa se apoiar em artifícios se não para enriquecer o filme, ao menos para evitar sabotá-lo.

A conclusão é de que The Runaways não funciona nem como farsa (por faltar o componente imaginativo de um Isto é Spinal Tap [This is Sinal Tap, 1984] ou Não Estou Lá [I'm Not There, 2008]) nem como retrato histórico. O foco em Cherie Currie e Joan Jett se explica pelo próprio envolvimento das duas na produção — são heroínas, enquanto Lita Ford, que se recusou a ceder sua versão da história por ridículos mil dólares, é ignorada na maior parte do tempo e usada em determinado momento como mero pivô da saída de Currie da banda.

A quem interessar possa, vale dizer que, apesar da enorme influência das Runaways seguir merecendo um filme maior, a trilha tem muito David Bowie, Iggy Pop, Sex Pistols, uma pitada de James Brown e, é claro, ch-ch-ch-ch-cherry bomb até o osso. A vocação original de Floria Sigismondi é bem posta ao serviço de fazer de The Runaways um filme essencialmente musical, mais para os ouvidos que qualquer outra coisa, o que é muito bom. A desorientação e uma certa ilineariedade em relação à escalada da banda ao sucesso também funcionam ao colocar o espectador na perspectiva atordoada de uma garota com 16/17 anos que mal sabe direito o que está acontecendo à sua volta. Apesar disso, o que vai chamar mesmo a atenção de maneira positiva é o talentoso Michael Shannon, que encarna Kim Fowley de forma histérica, com uma afetação quase à altura da lenda.

Em respeito aos leitores que só se interessaram por The Runaways pelo vínculo com a Saga Crepúsculo, cabe dizer que as limitações sempre evidentes de Kristen Stewart, aqui, combinam-se à personalidade bad girl que se esconde tão artificalmente nos filmes dos vampiros e que aparece em alguns bons momentos de Férias Frustradas de Verão (Adventureland, 2009) pra compor uma Joan Jett divertida e no "modo foda-se" o tempo inteiro. Dakota Fanning segue num módulo grogue estranho e que de qualquer forma se encontra em saldo positivo por não ceder às ciladas do melodrama familiar barato já previstas na biografia.

No mais, The Runaways servirá aos raros fãs da banda e à garotada apaixonada por Crepúsculo (Twilight, 2008) como frágil curiosidade em ambos os casos. Qualquer expectativa além disso (incluindo a fantasia alimentada por muitos em relação a Stewart e Fanning juntas, seus tarados irrepreensíveis!) está fadada à frustração.

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