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Críticas

Cineplayers

O espectador nivelado.

7,5
O texto pode conter spoilers sobre a trama

Olvidados entre as décadas de 60 e 70, uma quantidade considerável de ensaios de Roland Barthes se debruçou, ainda que no campo literário, sobre as teorias da recepção, sobretudo quando essa instância, a do recebimento de uma obra, a do fluxo dos céus para a terra, se opunha de certo modo ao endeusamento da figura do autor. Este, pensa-se até hoje, detém direitos sobre o sentido da obra, da sua obra, restringe o leitor ao sentido correto, ou ao menos o mais plausível, diante do qual haveria um sem-número de absurdos interpretativos. 

E se transpuséssemos o desafio ao cinema? Considerando-se certamente as diferenças de meio que a literatura dispõe de um tempo enfaticamente mais alargado para desenvolver-se, e, portanto, para ser ''recebida'' (lida), enquanto os filmes (desconsideramos aqui, claro, as obras-monstro) só retém uma faixa média de duas horas para si; que leitura e espectatorialidade convergem e divergem em vários aspectos, ainda assim, nos deteremos sobre um que parece cindir num abismo maior aquele que lê palavras e aquele que vê imagens, e diante do qual o terror e o suspense são positivamente os gêneros mais abusivos.

A princípio, The Void (The Void, 2016) apresenta-se sob três tipos: os mortos no chão de uma casa e um garoto que dela foge, todos vítimas; dois homens armados, que chamaremos de assassinos por terem carbonizado uma garota aos urros; e uma horda de encapuzados, espécie de Ku Klux Klan ou seita religiosa, a serviço de quem ainda não sabemos estar. Cientes de que o gênero não joga com gratuidades, há um peso em germinação, algo plantado em nós, agora acompanhantes voluntários e involuntários da história – por um lado, porque entrar no Cinema é escolher entregar-se ao escuro, e também porque o horror não pede licenças para nutrir-se de quem o presencia. E aí segue-se para o efeito tranquilizante do hospital, aonde o garoto fugitivo e ferido é levado pela polícia. Sem que tampouco se anuncie, ainda outros elementos, elementos que chamaremos de ''pressurizações'', silenciosamente se instauram na trama, mas que só perceberemos como tais depois: há, no recinto, para além de outros personagens, uma menina grávida prestes a dar à luz, uma enfermeira que recentemente havia perdido o filho do policial (protagonista) e uma aprendiz escandalosa e preguiçosa de enfermagem, a qual ficará responsável pelo dispositivo breve de anunciação do horror, um tipo de pista lançada de forma jocosa e que une a ficção a algum aspecto assertivo sobre a ''realidade'': ''você sabia que, estatisticamente, há uma chance maior de que se morra num hospital do que em qualquer outro lugar?'', dirá a um paciente em recuperação.

Eis que o espaço do hospital não demora a se apresentar como o espaço de um cerco: os encapuzados, imóveis, impedem a saída de todas as (supostas) vítimas, ao mesmo tempo em que não fazem questão de entrar (supomos, por alguma espera ou algo de dentro que os impede, ou mesmo os dois). E por um milagre do gênero, aquele que dispensa qualquer didatismo ou falatório explicativo e logo se apressa em acelerar o ritmo da panela de pressão ali criada, o cerco também se torna interno por meio do gore: uma criatura monstruosa, em meio a guinchos, espirradas de sangue e patas imensas, ameaça-os de dentro. As pressurizações são acionadas intradiegeticamente: é preciso cuidar da jovem grávida, porque, como expiação do casal desmanchado, aquela criança precisa nascer, acalmar a ajudante tumultuada, dar conta das mortes internas e formular algum plano de escapatória.

Porque, no fim das contas, The Void se estabelece como um jogo de oposições: o dentro seguro, ainda que não por muito tempo, e o fora ameaçador, o subterrâneo monstruoso e o elevado onde tudo o que é humano permanece, o parasitário e o impulsivo; e também, aquela que é célebre nas narrativas do médico louco e das experiências megalômanas: a fala como evocativo de uma expectação que se constrói entre o passado e o futuro. A partir de certo ponto na trama, quando a presença no hospital já tiver se tornado uma câmara infernal sem escapatória, grande parte dos diálogos se travará entre certo passado, evocando aqueles que já presenciaram as mutações monstruosas e rituais, o início do grande plano de burlar a morte, a filiação em dezenas de outros maníacos pelo grande plano; e um futuro, o porvir fantasioso da ambição do médico, o exército de frankensteins e a mostração efetiva de tudo aquilo que a narrativa acumulava. Tudo deve convergir no presente, mas sempre sob a sombra do que já foi e do que certamente virá.

Mas acumular para quem? A quem se prestaria o serviço tensionante de toda a espera e construção de que viemos falando? Foi preciso chegar até aqui para unir as pontas com a sugestão do início: é sobre o espectador, e ninguém mais, esse novo tipo de ''leitor'' em quem dificilmente prestamos atenção, que o efeito de costura das imagens (não necessariamente delas, mas do constructo) vem incidir. É para nós que a narrativa não pede permissões, somos nós que repentinamente precisamos lidar com a criatura bestial e os encapuzados, tanto quanto os prisioneiros do hospital; é por esse processo de transferência, de entregar as mãos e adentrar, caminhar junto, que a tensão deles é a mesma que a nossa. No casulo da sala, o espectador não pode desviar das imagens, só, e no máximo, fechar os olhos e tapar os ouvidos – e, ainda assim, a pregnância da imagem e o alcance do som chegam. Enquanto o leitor pode levantar a cabeça e ser livre, aquele que vê tem a liberdade da escapatória ainda mais reduzida. Porque o horror nivela, decerto, mas em único momento também nos dá a permissão de estar além da trama: quando se diz ''everything will be alright'', esta máxima que Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) imortalizou, nós sabemos que tudo, muito pelo contrário, logo se tornará o horror. Neste único momento cintilante nos é presenteado o privilégio de estar acima, mas só para sermos engolidos pela equanimidade no segundo seguinte.         

Comentários (6)

Victor Lima | terça-feira, 02 de Maio de 2017 - 10:31

Parabéns pelo texto! Descobri o filme graças ele.

Lucas Nunes | domingo, 11 de Junho de 2017 - 02:56

O filme tem boas ideias, mas é direção é muito amadora. As atuações estão medianas e alguns personagens foram mal desenvolvidos. Uma pena!

●•● Yves Lacoste ●•● | domingo, 11 de Junho de 2017 - 06:02

Eu achei o roteiro fraquinho, com pontas soltas e os personagens totalmente apáticos. Possa ser que agrade aqueles fãs do gênero que gostem do tipo de estética que foi a aparência nojenta das criaturas, já que abdicaram quase que total do uso de CGI.

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