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Tiro na Noite, Um

(Blow Out, 1981)
8,2
Média
447 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Em busca da perspectiva

10,0

Como o real torna-se identificável como real? Esta pareceu ser uma questão latente para pensadores e artistas no século XX. De alguma forma, a produção do pós-guerra manteve um interesse contínuo não só nos eventos em si, mas nas perspectivas que constituíam a percepção desse evento. Que o digam as obras dos pensadores do pós-estruturalismo, que a partir do político ano de 1968 marcaram uma certa recusa às metanarrativas e metateorias que explicam e confirmam visões legítimas de mundo. Enquanto isso, de maneira sinérgica, havia obras que exprimiam essa noção geral.

Lembremos: O clássico japonês Rashomon (1950) atesta uma impossibilidade de contar a verdade, bem como o clássico texto teatral de Nelson Rodrigues Boca de Ouro (1959). Em Blow Up - Depois Daquele Beijo (1966), o italiano Michelangelo Antonioni pousou na Inglaterra jet-set e mostrou que em um mundo preocupado com escapismo e êxtase, a verdade é fugaz frente ao desejo. Também o fez Francis Ford Coppola, ensanduichado entre o primeiro e o segundo filmes da saga O Poderoso Chefão em A Conversação, onde o único indício para (tentarmos) aferir a verdade é o som. E em 1981, Brian De Palma ofereceu sua perspectiva sobre as perspectivas com Um Tiro na Noite.

O parentesco com o filme de Antonioni pode ser aferido logo no título: o primeiro no original é Blow Up, enquanto o do cineasta americano é Blow Out. A referência não mora apenas na inspiração; De Palma antes verte a crônica do hedonismo do filme-base para um suspense ao mesmo tempo  político e artístico.

No filme do De Palma, desde o início, fica claro que há uma sensação geral de realidade manipulada, onde chegar à verdade torna-se uma luta. Por isso, o filme também é, em parte, sobre cinema. Feito na sinergia de alguns eventos históricos que desiludiram a nação - como o assassinato de John e Robert Kennedy, bem como o escândalo de Watergate - mostra que o absurdo do real, com suas conspirações e assassinatos, são de um absurdo cinematográfico, enquanto a sétima arte, ironicamente busca o real.

Um Tiro na Noite começa abordando esse paradoxo de forma irônica: uma câmera subjetiva adentra os corredores de uma sororidade. Ela percorre corredores, se esquiva de pessoas e adentra um banheiro. Encontra uma jovem tomando banho. A mão de luva negra munida de arma branca típica tanto dos romances de Edgar Wallace quanto dos filmes gialli italianos aparece em tela. Ela grita. Um grito fraco, pouco convincente… Pois faz parte de um filme.  A câmera corta para Jack Terry (John Travolta), um técnico de som que atesta para o produtor: aquele grito é ridículo, pois não é real. Não cabe em uma narrativa, onde acreditamos que alguém morreu.

Logo em seus quinze minutos, Um Tiro na Noite parte para a sua cena fundamental: o protagonista situa-se em meio a uma ponte para registrar sons. Um carro desgovernado arrebenta  a mureta e cai no rio. Jack mergulha, desesperado, e lá de dentro tira Sally (Nancy Allen). O outro passageiro do carro está morto. E como descobriremos depois não é qualquer passageiro, mas o governador George McRyan, o candidato à presidência favorito das pesquisas. E Sally era a companhia do homem casado…

A insistência para esconder o fato alerta Jack, que ouve novamente sua gravação e percebe: antes do pneu estourar e o carro perder a direção, houve um primeiro estouro. Quando um repórter vende as fotos para uma revista e ele as põe em sequência, não há dúvida: foi um tiro. E o principal interessado em encobrir que o acidente é um atentado é Burke (John Lithgow), um homem frio e implacável.

Como Coppola, De Palma herdou a visão dos realizadores autorais da Era de Ouro de Hollywood, dos renovadores franceses da nouvelle vague e dos novos cinemas que surgiam na Europa; mas na contramão do realismo decadentista, ocre e próximo de Coppola, Um Tiro na Noite é o cineasta entregando um suspense hitchcockiano infundido de plasticidade, tendo como resultado um filme encenado nos mínimos detalhes.

Nos mínimos detalhes. A expressão pode parecer superlativa, mas não é usada aqui levianamente. De fato, ao ser um filme que encena o tormento que uma morte causa em várias vidas, Um Tiro na Noite, como Rashomon e Boca de Ouro se centrar em desestruturar toda a cena que detonou o seu conflito: o pneu furou ou levou um tiro? Quem estava lá dentro? A quem interessava quem está lá dentro? Responder as perguntas que compõem a realidade tem o seu preço

Isso de certa forma contamina seus personagens: Jack Terry, que abandonou a carreira de especialista em segurança da polícia, trabalha no cinema, e quando o filme começa é um ficcionista em busca do real, de um elemento da realidade que possa tornar a mentira verossímil. Sally é uma vendedora de cosméticos frustrada, que ganha por fora encenando escândalos sexuais com homens influentes. Também é apaixonada por maquiagem, discursando o quanto a mesma não tem de ser usada para melhorar o real, mas parecer real. Por último, Burke está na caçada pela mulher que sobreviveu ao atentado, mas antes encontra pela frente mulheres que parecem com ela. Para disfarçar o engano, encena assassinatos cruéis, “criando” um serial killer para a mídia.

Ao contrário da encenação Antonioniana, onde o protagonista de David Hemmings procura uma morte que talvez seja só uma impressão (há um gênero ali ou apenas a mímica de um?), De Palma aproveita-se dos recursos narrativos Hitchcokianos de suspense: ao espectador, nada é escondido. Os três personagens são apresentados em todas as suas motivações e conflitos; Sally sente-se culpada pela encenação, Burke quer apagar os rastros que quebrariam a ilusão de acidente e Jack Terry é cobrado constantemente para criar ilusões, já que, afinal de contas, ele precisa de um grito, com a grande culpa de expôr a verdade - no seu passado, um policial infiltrado morreu por falha de um equipamento seu. O fantasma que carrega é insistente: quando Jack falha em enganar no seu controle de cena, o pior acontece.

Reforçando o caráter de ilusão que o realismo carrega consigo, há a questão de encenação DePalmiana, o uso digressivo de câmera e montagem que nos “arrancam” da imersão e nos insere em um jogo de montagem. Exemplos não faltam: consideremos quando Jack reconstrói a noite anterior, ouvindo a fita e apontando um lápis no lugar do microfone. Quando somos imersos na repetição do som da cena de minutos atrás, a montagem “presentifica” em um vaivém temporal as imagens do passado intercaladas com a do presente. Há até mesmo um momento mais explícito, quando De Palma ao invés de alternar, sobrepõe as imagens. O passado é reconstituído através do formalismo e a interferência pessoal do protagonista “desmonta” aquela cena. O mesmo pode ser dito quando ele sincroniza imagem e som para recriar um acidente e, entre acelerações e rebobinagens, a cena que vimos lá frente se recompõe - mas com um novo detalhe. O filme é remontado aos nossos olhos - e de maneira sofisticada e contemporânea, o cineasta nos convida a montar seu filme junto com ele.

O fazer cinematográfico, que tornou-se ponto central de interesse para os diretores do cinema de poesia, do cinema de invenção, do cinema de fluxo entre tantos outros epítetos são refletidos por um momento nesse suspense admitido como construção do gênero, derretido no “neon-noir” da fotografia de Vilmos Zsigmond, que emprestou seu olhar barroco e fluido para nomes díspares - fotografou filmes como Amargo Pesadelo, Contatos Imediatos do Terceiro Grau e O Portal do Paraíso. Como resultado, Um Tiro na Noite é grosseiro e tétrico, mas as cores estouradas, as luzes estroboscópicas e os ângulos exagerados são de composição delicada, uma estetização da violência em seu aspecto mais trágico. Contribui para a imersão nesse sentido a trilha tão clássica quanto transgressora de Pino Donaggio, um homem que em sua carreira passeou pela música popular, pelo rock e pela música clássica. Seu toque dramático, às vezes no limite do assumidamente cafona, é infalível em criar a atmosfera de Um Tiro na Noite, que passeia no limiar entre o tétrico e o belo - e até os dois ao mesmo tempo, como é visto no final. 

Sim, há beleza e horror em Um Tiro na Noite. Um belo a ser buscado e um horror a ser evitado. O horror da narrativa fabricada versus um ideal de iluminação de descoberta do real, de dever civil a que o protagonista se impõe por culpa. Uma beleza em conhecer os aparatos que nos ajudam a dar organização lógica do real - e como ele pode ser desmontado, evocando em certo momento um estado de desnorteio e confusão mental sugerido inclusive pela forma, quando o protagonista encontra seu trabalho danificado e nosso ponto de vista, a câmera, descentraliza do protagonista e gira seu próprio eixo, descrevendo o ambiente de maneira confusa. O uso do método que nos deixava com a impressão de progressão pode literalmente ser mandado pelos ares, pois como De Palma frequentemente nos lembra, narrativa é construção e “ganha” quem contar a melhor história, a preços materiais, espirituais e até mesmo fatais. 

Com isso, ainda que não seja tão óbvio quanto, digamos Carrie - A Estranha, Scarface ou Os Intocáveis, Um Tiro na Noite é um momento central na filmografia do diretor, quando conjugou o uso de sua estética elaborada com uma visão intelectual e crítica de como um filme poderia tocar em questões nervosas de sua sociedade - ainda não fazia muitos anos desde os Papéis do Pentágono, por exemplo - e lembrar do poder por vezes redentor, mas muitas vezes destruidor da busca pela narrativa, onde a tragédia é saber da história por trás da história, saber o que há por detrás da tela, saber como aquilo foi montado, espiar as coxias. O interesse de De Palma sempre foi a confrontação frontal de diferentes perspectivas (lembremos que, um ano antes, seu Vestida Para Matar não apenas refilmou Psicose, mas o subverteu) e, em seus melhores momentos, é impressionante a capacidade de articulação desse cinema de gênero muito particular para desconstruir e reconstruir os próprios limites. O real, ou sua percepção, inventado e narrado, desconhece limites enquanto expressão.

Comentários (2)

Marcelo Queiroz | quarta-feira, 26 de Agosto de 2020 - 15:26

Brum é outro nível... Escreve muito!

Rodrigo Nuso | quinta-feira, 27 de Agosto de 2020 - 10:34

Melhor filme do De Palma, mesmo! Mas, de longe!

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