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Tocaia no Asfalto

(Tocaia no Asfalto, 1962)
7,8
Média
15 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Tudo é Castigo

9,0

A partir do argumento do lendário produtor Rex Schinder e da coordenação de Glauber Rocha, Roberto Pires desenvolvia o seu terceiro longa metragem, Tocaia no Asfalto (1962). Na primeira sequência, somos apresentados a um solitário, que podia estar em qualquer western americano dos anos 50 - olhar imperdoável, cigarro na boca - mas de inconfundível sotaque nordestino. Senta-se em frente a um homem, começa a brincar de tiro ao alvo com sua pistola, sem sucesso, e diz ao futuro defunto que não costuma errar a pontaria. Alerta que provavelmente a arma está desajustada. Para comprovar a sua tese, aponta-lhe a cabeça; o tiro dessa vez corre certeiro na testa do alvo, e apresenta os créditos iniciais.

Incialmente, estamos diante de um filme de caçada, estilo Zinnemann. Rufino (Agildo Ribeiro) parece um vilão sanguinário em busca apenas de recompensa, viaja quilômetros à capital baiana para fazer um trabalho que ninguém ali faria, matar um importante coronel local.

O matador chega a uma pensão barata, que também recebe um prostíbulo à la Rua da Vergonha (1956), comandado por Dona Filó (Jurema Penna). Neste espaço, conhecemos a visceral Ana Paula (Arassy de Oliveira), instantaneamente fisgada pela inocência e atrevimento do protagonista, chamado pelos seus pares de “nordestino”. O encontro do western de caçada com drama romântico já formava uma interessante junção clássica de gêneros cinematográficos, contudo, ganha ainda mais força quando Pires resolve também apresentar o ambiente coronelista do alvo.

Filma o dinheiro, glamour das festas grã-finas e papos intelectualoides, especialmente empunhados pela força da atuação de Geraldo del Rey, dono de um personagem pretensioso que se vende como diferente, mas demonstra apenas que a nova política baiana é mais do mesmo, um fantoche da família Magalhães. Cheio de boas intenções e olhar ao futuro, mas com os dois pés fincados na manutenção dos privilégios ricos, mesmo que vocifere contra os métodos nada democráticos de seus adversários. A superioridade do mundo rico se dá apenas por uma condição de pertencimento social.

O acúmulo de terras daquele pequeno grupo e seu desejo por mais poder influi diretamente na vida do outro núcleo narrativo, que parece completamente distante. Separação geográfica que se tornaria massacrante com o progressivo distanciamento entre cidade alta e cidade baixa, vê-se aqui de forma sofisticada, mas absurdamente violenta.

O grande acerto de Pires é ir na grande feira cultural e narrativa dos ambientes mais humildes de Salvador, como já fizera com imenso êxito em seu filme anterior. O bordel com cara de pensão barata de Dona Filó é muito mais complexo narrativamente do que o mundo materialista da pretensiosa aristocracia baiana. Sensível observador do cotidiano soteropolitano, confere ainda ao seu filme mais camadas narrativas quando se espelha ao Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, e adiciona a sua obra a religiosidade tão fortemente marcada no cotidiano de sua cidade.

A sequência filmada na Igreja de São Francisco é linda. Um plano fechado, que se inicia num anjo barroco carregando o peso dos pecados do mundo nas suas contas, movimenta-se para o olhar do assassino que planeja a morte da sua vítima na imensidão de um dos monumentos mais importantes da formação colonial católica de Salvador. Não satisfeito com tamanha aula de cinema brasileiro, Pires coloca no caminho de seu matador de aluguel um padre estrangeiro, filmado num contra-plongê, ao ver aquele pobre miserável apontar com os dedos aos ângulos da morada de Deus, pergunta-lhe o que faz ali, o plano fecha no rosto do protagonista, que não vê melhor opção que apresentar-se como retratista ao sacerdote.

Apesar da beleza metafórica e narrativa de toda a obra do Roberto Pires, a patota clássica do Cinema Novo nunca assumiu concretamente o seu trabalho para si. Bom deixar claro que não eram inimigos, tanto que Rocha tem participação ativa na produção das primeiras obras do seu conterrâneo. Entretanto, a eleição típica dos primeiros anos do Cinema Novo pela estética da fome, acima de tudo, pela permanente alegoria da miserabilidade, não atraía Pires.

Os baianos contemporâneos de Nelson Pereira do Santos e companhia foram colocados num apêndice pela crítica chamado de Ciclo Baiano de Cinema, ou ainda Nouvelle Vague baiana. A galera que se encontrava na sorveteria Iglu para tomar cerveja e falar de cinema, como bem contam no documentário produzido pela Iglu Filmes sobre A Grande Feira (1962), não tinha as pretensões filosóficas e revolucionárias do Cinema Novo. Reuniam-se para sonhar em produzir, baseados nos filmes que viam, e que acima de tudo acreditavam que iam ser vistos.

O drama vivido por Rufino com ares de Matar ou Morrer (1952) cresce pelo massacrante e violento desprezo social. Assassino religioso, guarda dentro de si a moral cristã que o faz titubear; quando ouve de sua amada que não é mal, quando alguém, mesmo que seja uma prostituta, ainda mais marginalizada que o próprio, olha os seus olhos e consegue ver a pureza de sua essência, leva-o a sonhar a viver um grande amor, banhado pelo por do sol no Farol da Barra, e uma vida feliz, digna e longe do seu passado.

Pires desenha a tocaia romântica para a última balada de seu pistoleiro conduzido pela ganância dos coronéis baianos, mas motivado pelos seus próprios sentimentos. Se a arma de fogo terminaria o trabalho, o cinema eterniza a escolha dos fotogramas.

Comentários (1)

Caio Lucas | quinta-feira, 08 de Abril de 2021 - 19:36

Chamado de “nordestino” provavelmente porque a Bahia não fazia parte de uma região denominada "Nordeste" à época.

Um dos melhores filmes nacionais, de fato não é "cinema novo".

Igor Guimarães Vasconcellos | sexta-feira, 09 de Abril de 2021 - 04:56

Debate longo. Conheço gente que coloca essa fase inicial do Pires como cinema-novista, o próprio Glauber citava bastante a Grande Feira, e principalmente o Bahia de todos os Santos do Trigueirinho Neto, pensando no cinema baiano como pioneiro na temática , especialmente no que diz respeito à representação negra.
Não quis entrar muito nisso no filme, mas eu também acho que o Pires desdobra pra um outro caminho- vide Abrigo Nuclear haha

Sobre o nordestino, acho que vc tá certo, mas também tem uma carga de preconceito, de mesmo tando fodido ali naquela situação há alguém pior que eu : o nordestino. Tipo na escola, quando vc sempre sofre bullyng por uma parada ai chega alguém que ainda tem aquela característica mais acentuada que você, e você ao invês de defender o teu companheiro, empodera-se de poder xingá-lo, sabe como é?

Ted Rafael Araujo Nogueira | domingo, 11 de Abril de 2021 - 10:58

A inclusão da Bahia ao caráter de Nordeste como região veio em 1969. Até ali o estado era separado por outras divisões. Isto acaba por gerar conflitos regionais e acusações de que muitos baianos nem nordeste se considerariam. O que é uma fuleiragem. Mesmo sabendo que o meu Ceará é o melhor estado do Brasil.

O lance do classificacionismo na questão de ser cinema novo ou não é invocada. Não somente pelas escolhas que a cartela adota - como o trato com a miséria citada - mas porque o movimento do cinema novo fora de alcunha escolhida por realizadores, no caso o grande Glauber. Então a coisa muda um pouco de figura quando a classificação não vem da crítica escolhendo que filmes participariam do esquema. Mas é uma escolha de autores. O próprio Pires aí não se interessava e o Glauber o citava aqui e ali. Segue como não encaixado pra mim.

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