Existe um tipo de cinema que, ao se aproximar dos códigos do drama psicológico e do terror simbólico, escolhe falar mais através das imagens do que das palavras. Torniquete, estreia de Ana Catarina Lugarini, se insere exatamente nesse território, um espaço onde o corpo vira metáfora e a casa se transforma em extensão das cicatrizes emocionais de quem a habita.
Logo nos minutos iniciais, o filme entrega sua promessa estética: somos jogados dentro de um suposto sequestro, com direito a gritos, correria e uma atmosfera sufocante que beira o pesadelo. O trabalho de som e a condução precisa de Lugarini criam um desconforto que parece nos preparar para um thriller sobre violência, sobrevivência e laços familiares corroídos. Mas essa expectativa logo se desfaz. Assim como suas personagens, o longa não está interessado no evento, e sim nas reverberações que ele provoca.
Lucinda (Marieta Severo), Sônia (Renata Grazzini) e Amanda (Sali Cimi) são mulheres conectadas por traumas que jamais são plenamente verbalizados. Há uma ferida, sim (uma literal, exposta no rosto da adolescente), mas seu significado é empurrado para o campo do simbólico, das leituras possíveis, das interpretações abertas. A avó posa diante de uma parede rachada; a mãe tenta, em vão, apagar uma mancha de sangue no chão. Nenhuma dessas ações se sustenta apenas no gesto, são traduções visuais de dores que o roteiro escolhe não nomear.
Esse jogo, no entanto, nem sempre joga a favor do próprio filme. O uso insistente de alegorias (feridas, cortes, sangue, rachaduras) encontra potência plástica, mas esbarra na ausência de um lastro emocional mais robusto. Afinal, de que trauma estamos falando? O que essas mulheres carregam que as mantém presas, quase como fantasmas num espaço que parece existir fora da realidade? Lugarini opta por nos deixar apenas com as consequências, enquanto as causas seguem trancadas em algum cômodo inacessível da narrativa.
E quando o longa flerta com algum deslocamento de tom, essa sensação de incerteza só se acentua. O que começa com ecos de um filme de gênero, quase um horror psicológico, desliza para o território do melodrama, até alcançar um desfecho que, em vez de resolver, interrompe. E interrompe não no sentido de um corte brusco e impactante, mas como quem se despede sem sequer ter chegado.
Há, sim, lampejos poderosos nesse percurso. A relação entre Lucinda e Amanda, por exemplo, encontra em Marieta Severo e Sali Cimi uma química que quase sustenta o filme por si só. É nas trocas silenciosas entre as duas — uma endurecida pela vida, a outra ainda tateando seus próprios limites — que Torniquete parece entender onde reside sua real força. Pena que essa linha seja constantemente atravessada por símbolos que, ao invés de amplificar, acabam sufocando as possibilidades de desenvolvimento mais orgânico das personagens.
No fundo, Torniquete se revela um retrato sobre mulheres à deriva, enclausuradas não apenas em uma casa, mas dentro dos próprios traumas, dos quais nem o filme, nem elas, parecem dispostas a falar diretamente. E se há aqui um gesto criativo louvável — o de confiar na potência da imagem, na sugestão e no não-dito —, ele também revela as armadilhas desse caminho quando não há uma chave que nos permita, minimamente, destrancar essas portas.
Ana Catarina Lugarini surge, portanto, como uma cineasta que demonstra domínio claro sobre os recursos estéticos que escolhe mobilizar. Seu desafio, daqui em diante, talvez seja entender que alegoria nenhuma se sustenta sem que, antes, possamos sentir que há algo, de fato, por trás dela. E isso, no cinema, segue sendo tão vital quanto qualquer imagem bonita ou metáfora bem construída.
Filme assistido no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
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