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Críticas

Cineplayers

O road movie lotado de western e tristeza de Peckinpah.

9,0

Uma jovem grávida banha seus pés em um tranquilo lago, rodeada por patos e sons relaxantes da natureza. Sua paz logo é cessada, quando dois homens de imponentes botas de couro a escoltam, quase que como uma prisioneira, até seu pai, figura importante e intimidadora. “Quem é o pai desta criança?”, ele pergunta. “Alfredo Garcia”, ela responde. A partir deste momento, a cabeça do misterioso homem já vale um milhão de dólares. As buscas chegam até Bennie (Warren Oates), um pianista beberrão que vai atrás de Alfredo pelo dinheiro, acompanhado da prostituta Elita (Isela Vega), sua paixão, em uma jornada de final já previamente imaginado, ainda que inesperado por aqueles que vivem a história.

Seu mundo é selvagem, sem espaço para romantismos, onde um simples piquenique pode acabar em estupro e duas mortes. É também machista, grosseiro, tão violento quanto Meu Ódio Será Sua Herança (Wild Bunch, 1969) e demais filmes do diretor; em gráfico e em moralismo. Mulheres são socadas em público, constantemente expostas com os seios de fora, e as poucas palavras de amor ditas com alguma sinceridade perdem-se em um futuro obscuro, cruel, sem muita esperança. De lágrimas no chuveiro, de poucos abraços, de pequenas atitudes de um ogro que sabe que ama, mas não sabe corretamente como demonstrar. É um mundo onde a marchinha feliz de carnaval pontilha a passagem de um caixão de uma criança; onde a mentira se esconde na verdade e a verdade se despe da mentira; onde a cabeça de um defunto pode valer muitos dólares, a salvação para uma vida já perdida. É neste inferno que vivem os personagens de Tragam-Me a Cabeça de Alfredo Garcia, um filme típico de Sam Peckinpah.

Sua corajosa transformação de um road-movie amoroso lotado de esperança em um western movido a vingança é envolta por genialidade, com direito a caatingas desérticas e duelos onde só um pode viver. É o retorno do valente, do ‘homem sem nome’, do um contra todos, agora acompanhado de cavalos de metal, que bebem gasolina e cospem fumaça. Peckinpah está afiado, construindo um momento mais forte que o outro, como o desabafo de Bennie antes de cavar, ainda no quarto, ou então seu desesperado discurso comovente, minutos depois, em um cemitério. É um filme que, do começo ao fim, tem identidade e imortalidade própria, assinado para tal e com uma montagem arrojada e que sempre leva o filme à frente, bem a moda do cinema marginal, que contraria os estereótipos Hollywoodianos e nos mostra algo mais real do que alguns gostariam de ver, sem mocinhos ou finais felizes.

As estradas são vivas, cheias de verde e de uma pacificidade aparente que contraria as cidades, sujas por terras, de quartos esburacados desconfortáveis e muitas, muitas pedras. Mas não são nessas cidades, incômodas e atrasadas, que as ações principais acontecem. É justamente quando seus personagens estão na estrada, o verdadeiro Velho Oeste, que os momentos mais selvagens vêm à tona. É o tiro raivoso da vingança. É a emboscada contra a diligência vermelha, que carrega um saco com um ‘gato de um amigo’ morto às moscas. A sequência em que há um tiroteio generalizado é uma auto referência certeira, lembrando momentos de outrora da carreira do diretor, onde quem sobra é apenas um inofensivo velho assustado com as mãos para cima. O figurino, no começo da jornada branco e limpo, vai dando lugar a um marrom que metaforiza o estado de espírito de nosso anti-herói. Um estado que não tem mais volta.

Neste mundo onde o dinheiro pode corromper a todos, é curioso o tratamento dado em cima de Bennie. Citando de maneira óbvia o clássico de John Huston O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre, 1948) ao chamar um de seus personagens de Fred C. Dobbs, a transformação de caminho inverso do homem amoral no justiceiro que é perseguido pelo passado é interessante e muda nossa maneira de percebê-lo. Se no começo é um pobre coitado patético em busca de uma grana para viver feliz de vez ao lado da mulher que ama, no banho de sangue final (característico de Peckinpah) já temos outra visão sobre seus pensamentos, seus atos e sua motivação. Seguindo pela linha do velho clichê aplicado de maneira original, o dinheiro já não importa, apenas fazer o que é certo. A bebida e os óculos escuros são seus companheiros inseparáveis, as principais testemunhas dos corpos que certamente ficarão estendidos pelo caminho ao confrontarem a fúria de Bernie.

Tragam-Me a Cabeça de Alfred Garcia é uma experiência única, violenta, crua. É o retorno do justiceiro, daquele que cruza o caminho dos poderosos sem dar a ideia de quem seja, uma quebra do lugar-comum, da jornada há muito com fim definido. É a tortura aos personagens, o aprender com a dor e a purificação com a morte. O autor transforma esta morte e sofrimento em beleza, em arte. É a glorificação do vulgar, do que é errado, do duvidoso. O último frame, do cano da arma com a fumaça ainda sendo exalada pela ponta da metralhadora, encerra de maneira genial esta viagem para um lugar que conhecemos tão bem com cavalos, chapéus e heróis, agora reinventado de maneira não menos sublime por Peckinpah.

Comentários (3)

Lucas Maciel | quarta-feira, 09 de Janeiro de 2013 - 22:47

Excelente crítica!

Natacha Alana | quarta-feira, 03 de Setembro de 2014 - 02:10

li por esses dias que Warren Oates aqui interpretara o próprio Sam Peckinpah, até nos trejeitos fanfarrão, os óculos escuros - do próprio diretor- e a garrafa com álcool, sua decadência, violência e iconoclastia remetiam diretamente ao criador da obra

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