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Críticas

Cineplayers

Felicity Huffman brilha intensamente nesse road movie de temática ousada e realização convencional.

6,0

- Como se sente sobre seu pênis?
- Eu não gosto nem de olhá-lo.
- E seus amigos?
- Não gostam tampouco.

O engraçadíssimo diálogo acima, proferido logo no início do filme por Bree Osborne (Felicity Huffman) e um psiquiatra (Danny Burstein), mostra bem o espírito de Transamérica, escrito e dirigido pelo estreante em longa-metragem Duncan Tucker: a leveza, mesmo se tratando de um assunto sério e polêmico, o transexualismo.

Em um ano em que a indústria americana, principalmente a de filmes independentes, resolveu tratar de temas gays, geralmente oprimidos dentro das gavetas dos executivos, como O Segredo de Brokeback Mountain e Capote, Transamérica surge, a princípio, como o mais marginalizado de todos. Afinal, se homossexuais de chapéus e esporas já são difíceis de serem aceitos, imaginem um que realmente quer virar mulher!

Sim, esse é o sonho de Bree: se livrar da genitália e se tornar definitivamente uma mulher. Quando tudo se encaminhava para a operação, surge uma notícia bombástica em sua vida: quando ela ainda se chamava Stanley, concebeu um filho que jamais soube existir. E pior, o garoto está preso em Nova York acusado de prostituição e porte de heroína. Sua terapeuta (Elizabeth Peña) então decide só assinar a autorização da cirurgia depois que Bree vá conhecer o garoto.

A futura transexual então decide viajar de Los Angeles, onde mora, até Nova Iorque, a fim de livrá-lo da cadeia. Decide voltar de carro para casa e também deixar o rapaz, que não tem para onde ir, com familiares, para que este possa receber a educação e atenção que jamais pôde dar. Entram então dentro de um carro velho em uma viagem pela fronteira com o México, com Bree incapaz de identificar-se como pai do garoto Toby (Kevin Zegers, aquele garoto da cinessérie Bud – O Cão Amigo, bem crescidinho), se apresentando como uma missionária religiosa.

É nessa viagem que ambos se conhecerão, se aproximarão e descobrirão finalmente o sentimento entre pai (ou seria mãe?) e filho. Assumindo-se como um road movie previsível e convencional, às vezes um melodrama com pitadas camp, o filme se sustenta graças a uma interpretação sobrenatural de Felicity Huffman. Ela, mais conhecida como uma das protagonistas da telessérie  Desperate Housewives, nunca tinha conseguido uma grande oportunidade, oportunidade essa que finalmente surgiu com esse filme e no qual brilha absurdamente. Sua composição discreta e equilibrada transparece verdade, sem nunca cair na caricatura, e um desavisado qualquer ficaria na dúvida se é um homem ou uma mulher interpretando a personagem (algo que agora vai ser difícil de acontecer, já que o filme acabou conseguindo projeção na mídia – inclusive acabou sendo indicado a dois Oscar, de melhor atriz e melhor canção).

A personagem Bree, por incrível que pareça, é a mais conservadora do filme! Sua postura, suas ideologias e sua forma de encarar a vida não poderiam ser mais de direita! Até sua forma de vestir é antiquada, o que provavelmente deixará o espectador mais atento bastante confuso. Todas essas nuances para com a personagem, méritos de um roteiro perfeito nesse aspecto, encontram na atuação de Huffman o veículo ideal. Aliás, não tenho palavras para definir melhor o que é ver essa mulher em cena. Digna de estar no panteão das melhores atuações da história do cinema, Huffman me conquistou completamente. Virei fã.

Uma pena que o filme do Tucker não siga o brilhantismo de sua atriz principal e peque em vários momentos. Como, por exemplo, aturar a cruel e cômica mãe de Bree (vivida por Fionnula Flanagan, mais conhecida como a governanta misteriosa de Os Outros), que parece ter saído dos piores melodramas latinos? Ou a falta de maior ambição do filme, que poderia aprofundar alguns dos temas propostos, mas prefere se manter na superfície.

É claro que no filme há várias qualidades indiscutíveis. Duncan Tucker, que já tinha familiaridade com o tema homossexual (dirigiu um curta-metragem gay, The Mountain King, que integra o longa Boys To Men), não deixa de criticar o conservadorismo da sociedade americana, ao mostrar Bree deslocada do convívio social. Também desenvolve bem a relação entre ela e o filho, mostrando as sutis e bem humoradas mudanças de comportamento que um e outro vão tendo no decorrer do longa. E, só por tratar de um tema tão polêmico como esse, já valeria o nosso respeito. Com Felicity Huffman então, vale os nossos aplausos.

Uma última curiosidade: Huffman apelidou de “Andy” a prótese peniana que usou durante as filmagens. Sem mais comentários...

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