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Críticas

Cineplayers

Os três poderes e a grande comédia dos ritmos.

8,0
Primeira implicação direta, escancarada e crucial para a existência de um filme enquanto significado – porque podemos considerar um cinema vazio e uma projeção no ecrã, mas somente a partir de um olhar é que a experiência toma corpo, adquire consciência –: há tantos filmes quanto podem haver pessoas na terra. Não no sentido contabilizante, e de fato seria curioso enumerar uma estimativa para o número de filmes já feitos, número de subjetividades já produzidas, isto sem contar aquilo que as instâncias de legitimação ainda virão a etiquetar como ''filme''; não, o que se pretende defender aqui é que há tantos significados para um filme quanto possam haver olhares nele sendo depositados, e que mesmo diante de uma apreciação muitíssimo semelhante, digamos, no campo de uma experimentação científica mais do que imaginária, a partir da qual pessoas com um background quase idêntico são submetidas a uma mesma obra, o resultado será ligeiramente diferente – ligeiramente, mas diferente. 

E, ainda assim, é possível espaçar os olhares sobre este Three (Saam Ren Xing, 2016) de Johnnie To em dois grandes grupos: uma espectatorialidade comum, projeção virtual de referências que não  necessariamente devem conectar-se à sensibilidade da obra, e que nem por isso é inferior à segunda; e uma outra que descarrega o prazer desse mesmo arcabouço de memórias cinefílicas diante da tela e, como por excitação conectiva de axônios, pode dizer: ''isso é Johnnie To, mas também é De Palma, Sergio Leone, Howard Hawks e mais uma dezena de coisas''. E embora se faça necessário reiterar a não prevalência de uma sobre a outra, tampouco é possível negar o peso que a reação passional da cinefilia (sobre)põe: há ali uma espécie de religiosidade fadada a se repetir eternamente, aprisionada numa ligação icônica com a imagem e que faz cada filme do tipo se assemelhar a uma aparição sagrada, manifestação do que é mais caro, reformulação do fascínio inexplicável. 

Independente desse olho, contudo, a primeira operação a saltar à sensibilidade desse todo espectatorial é uma de acumulação. O estranhamento da recusa do bandido em se submeter à cirurgia e dar a si mesmo chances de sobrevivência vem se confirmar num duplo e perverso jogo para ganhar tempo: aos comparsas mafiosos, o tempo de perpetuar outros assaltos; à narrativa, tempo de se transformar em devir, em um acréscimo constante e ansioso de tensões e polaridades adversas dentro do qual To ainda realiza a façanha de inserir o cômico. A primeira consciência que tomamos é a de que o princípio psicologizante da médica obcecada não virá a se concretizar: ela não importa tanto, a não ser quando está em relação com algo, e o privilégio é esse mesmo enraizamento de variáveis (personagens, situações, pequenos enganos, desvios, trapalhadas) para que o momento explosivo se amplie ao máximo de suas capacidades surreais.

Mas que tensão é essa que se instaura? De que ordem são essas relações que energizam os personagens ao confronto? Ora, é exatamente aquilo de que o título vem (nada ingenuamente) tratar: crime, polícia e medicina, três das instituições mais conturbadas e reguladoras das sociedades. A primeira, sobretudo, cara à Hong Kong não porque ali a máfia ceifa mais vidas ou perturba a teia social mais enfaticamente do em qualquer outra parte do mundo, mas graças à constituição do cinema da península, que o próprio To ajudou a consolidar, e circundando precisamente tal temática. E é porque Three se concebe a partir do jogo de poder entre essas três instituições que o acúmulo de energia se rompe no caos de uma das melhores cenas realizadas no ano.

A medicina, corporificada na rigidez da doutora incansável, encontra-se em esgotamento do poder que tem, posto que há um excedente de autoridade sobre o controle da vida que chamamos biológica, e que, ao mesmo tempo, esbarra no impasse do bandido que não deseja ser curado. A polícia tem sua assertividade reguladora obstruída porque esse mesmo criminoso tomou para si toda a escolha sobre sua única propriedade inviolável – o corpo –, e permanece resignada à completa não-ação. Resta ao bandido toda a carga de poder que as outras duas instâncias não infligem em lugar nenhum. Escolheu macular o próprio corpo para que sua extensão, o corpo mafioso, funcionasse organicamente, e enquanto isso, porque To não perde a oportunidade de rir de si mesmo, cita Bertrand Russell, Hipócrates e Selzer.

Da energia que não pôde ser descarregada até que todo o jogo cênico estivesse disposto, surge a explosão orquestrada: numa cena de aproximados 5 minutos, tudo descarrila, toda a ordem degringola em algumas dezenas de personagens correndo descontroladamente em slow motion, policiais infiltrados se revelam, um outro tem uma faca enfiada na bunda, enfermeiras são atingidas, paciente aleijados, retardados e moribundos de alguma maneira se deslocam, advogados, médicos e transeuntes de terno revelam suas identidades e tomam partido, bombas explodem em locais estratégicos; enfim, todo um bang-bang se instaura, e de tão decisivo para a trama e petrificante que é, torna-se hilário em condução. E assim To, como todos os mestres de quem aprendeu (pelo olho), e os outros que educou, cristaliza-se como o grande autor cuja obra difere dentro de si mesma em pequenas mutações de roupagem, mas sempre guardá o traço que o caracteriza: ser um dos maiores operadores de ritmo vivos.

Comentários (1)

Felipe Lima | sexta-feira, 31 de Março de 2017 - 14:49

Que crítica sensacional. Parabéns, Felipe!

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