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Críticas

Cineplayers

Últimos relatos.

8,5

Antes de qualquer coisa a ser dita sobre Últimas Conversas (idem, 2014), é preciso frisar que o produto final não reflete exatamente a ideia original do diretor Eduardo Coutinho. Morto antes do término da produção, desde o começo ele se mostrou insatisfeito como material que tinha conseguido juntar. Sabemos disso, pois seus parceiros, João Moreira Salles e Jordana Berg, diante do imprevisto da morte de Coutinho, decidiram abrir o filme com depoimentos do próprio, relatando em especial seus desgostos para com a produção. De certa forma, logo de cara eles abrem o jogo e são sinceros com o espectador, prevendo a desconfiança e nível de exigência de um público órfão do maior documentarista brasileiro.

Independente da fatalidade que forçou essa manobra por parte de Salles e Berg, o início atípico no qual encaramos pela primeira vez Coutinho na posição de entrevistado não deixa de ser emocionante. Apesar de se tratar de uma série de entrevistas com jovens cariocas do ensino médio, a abertura comandada por Coutinho mexe em um ponto delicado na relação que ele construiu com seu público ao longo dos anos. Agora ele não está mais ao nosso lado observando, indagando, se emocionando, rindo, ouvindo, compreendendo; agora é sua vez de ser observado, indagado, ouvido, mesmo que seja por alguns breves minutos. É uma posição um tanto incômoda para ele, e para nós é a confirmação de que o título escolhido para nomear este filme se direciona muito mais a esses breves minutos do que aos demais que trazem consigo os depoimentos dos adolescentes. Aqueles jovens terão muito ainda o que dizer e realizar no futuro, mas para nós resta um último contato com Coutinho.

O argumento inicial de Coutinho é baseado em sua opinião de que, por serem tão jovens, os entrevistados não poderão se basear tanto em memórias durante o depoimento. Portanto, ao contrário de outros projetos semelhantes, Últimas Conversas é mais direcionado a saber sobre as perspectivas sobre o futuro do que lembranças do passado. No entanto, inevitavelmente, o que temos mais uma vez são anônimos com suas histórias de vida, opiniões, medos, traumas, desejos e esperanças. O minimalismo diegético permanece o mesmo de filmes como As Canções (idem, 2011). Uma sala vazia de alguma escola e uma cadeira. No mais, resta-nos embarcar na proposta e usar de toda a imaginação e empatia para captar a beleza existente no que é comum, cotidiano, na vida do jovem brasileiro – a relação com os pais, escola, bullying, racismo, amizades, namoro, trabalho, expectativas futuras.

Mas logo se nota o principal desgosto de Coutinho com o projeto. Diferentemente dos entrevistados em filmes como Santo Forte (idem, 1999) e Edifício Master (idem, 2002), os adolescentes de Últimas Conversas estão mais à vontade e interagem de forma mais explícita com Coutinho, quase que numa conversa informal na qual se sentem um pouco atores, ou apenas conscientes de sua imagem. Não há mais aquele distanciamento seguro que isolava o entrevistado em seu próprio universo de lembranças e projeções, alheio ao exterior e ao espectador. Coutinho se incomoda com isso e por isso interage mais, interrompe, questiona e convida à reflexão, procurando uma autenticidade que convence o público, mas parece não convencê-lo. A interação ocasiona um resultado não intencional de um novo ensaio sobre a verdade na imagem, e sobre até que ponto alguém se mostra um pouco ator quando diante de uma câmera, a despeito do formato documental. E nisso acabamos encontrando uma ponte com Jogo de Cena (idem, 2007), enquanto tematicamente se aproxima muito de Moscou (idem, 2008), já que a gênese dos problemas de cada um desses jovens é, invariavelmente, a família.

Nunca saberemos o que seria de Últimas Conversas se não fosse a morte de Coutinho, mas o produto final só atinge tal beleza e força por conta da soma das circunstâncias em que foi realizado. A ideia inicial do documentarista era entrevistar crianças – nelas sim ele encontraria a procurada autenticidade dos depoimentos –, mas o que temos em tela toca direto no coração com um sabor agridoce típico (não foi também Cabra Marcado para Morrer um projeto que começou com um propósito e acabou seguindo por um rumo completamente imprevisto?). Luiza, a última entrevistada, tem apenas seis anos e surge como um arremate não somente do filme como de toda a filmografia de Coutinho. Sua pureza, delicadeza e inocência satisfazem um cineasta sedento pela verdade, relembram as origens, engrandecem uma esperança, arrancam um sorriso sincero e tocam, simultaneamente, o coração do público e o coração de um homem que, antes de tudo, se sentou por tantas vezes naquela posição para ouvir o que há de mais autêntico e belo nas palavras de um estranho.

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